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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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CAMINHOS PERIGOSOS

A cada dois dias, morrem três motociclistas em São Paulo; Folha passou 24 horas com um deles

Motoboys enfrentam riscos e discriminação

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Todos as manhãs, antes de montar em sua moto Honda 125 azul-marinho na qual pregou na carenagem o adesivo "Deus é Fiel", Rodrigo Francisco Silva Oliveira reza para pedir três coisas: que não seja roubado; que não sofra acidente grave; que não morra.
Ao lado de outros 170 mil jovens em São Paulo, Rodrigo, 23, ganha a vida como motoboy, o motociclista que vive de fretes.
A cada dois dias, morrem três deles em acidente de trânsito na cidade. Não há um período de 24 horas em que o Corpo de Bombeiros deixe de fazer o resgate de um corpo de motociclista das avenidas marginais. E em três anos os motoqueiros daqui passaram de 15% do total de mortos no trânsito para 32%, um aumento de 114% (os números, de 2002, foram divulgados nos últimos dias).
Os que sobrevivem vivem com medo e sofrem com o preconceito dos motoristas de carro. É o caso de Rodrigo, a quem a Folha acompanhou durante um dia. No período, ele levou fechadas propositais de motoristas de carros, cometeu mais infrações do que seria possível contabilizar e trabalhou por 15 horas seguidas.
Para segui-lo em sua rotina, a reportagem se utilizou o tempo todo de motos e pôde comprovar que há um sentimento geral de animosidade contra a categoria, muitas vezes justificado, mas que ignora a posição de vítima do profissional.
Nos semáforos, as pessoas em geral olham os "cachorros loucos", como os próprios se chamam, com desprezo e raiva. Vários recebem cusparadas e bituca de cigarro no peito. "Uma vez, levei um banho de vômito de um passageiro", conta Ailton da Silva Reis, 30. "Ele mirou em mim de propósito."
São vítimas, mas também violentos. Se um deles é atingido por um carro, os outros se vingam, ainda que não conheçam o atingido. "A gente quebra retrovisor mesmo, dá chutão", revela Rodrigo -e, se o machucado do colega é feio, é costume jogar o capacete no vidro de trás do carro como represália.
São 9h. Rodrigo deixou sua casa uma hora antes, na Vila Medeiros, zona norte da cidade, depois de ajudar os pais. Logo mais, sairá para sua primeira entrega. Já nos primeiros cem metros toma uma fechada de um Gol e quase bate.
Aciona a buzina, como fazem todos os seus colegas, a uma razão de trinta vezes por minuto. É o diálogo possível com os outros carros. "Sem buzina o dog não vive", diz ele, chamando a categoria por outro apelido comum. Daí o maior inimigo do motoboy ser o celular.
"Mulher dirigindo e falando ao telefone é fatal porque não ouve nossa buzina", diz Elvis Santos Lessa, 26. "Se a gente estiver no ponto cego do motorista, aí dançou." Outro problema são as linhas de cerol, mistura de cola e pó de vidro, esticadas no meio da rua por empinadores de pipa.
"Um amigo meu, o Caras, cortou a cara com isso", diz Rodrigo. Para evitar o problema, os mais abastados andam com uma espécie de antena de metal na frente da moto, que captura o fio e o corta antes que atinja o motoqueiro.
"Criou-se a imagem de deturpador de trânsito, mas, na verdade, junto dos pedestres e dos ciclistas, os motoboys são os mais vulneráveis", diz José Góes, coordenador de estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre os impactos dos acidentes.
"A situação é ruim e vai piorar", afirma Max de Paula, assessor de segurança da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). "O problema é que nossas ruas não foram projetadas levando em conta a existência de motoboys."
São 12h, Rodrigo se prepara para encarar um prato-feito e deixa escapar que o que ele teme mesmo é ser roubado. Depois dos acidentes, diz, os maiores inimigos do motoboy são assalto e polícia.
Na mesa do almoço, vários contam casos de motos tomadas à força por homens armados, que chegam a pé ou em outras motos. Os mais temerosos mostram os tanques amassados a pedradas pelos próprios. "Moto amassada o ladrão não leva", ensina Eduardo Fernandes Barbosa, 29.
Já a polícia é responsável por outra regra. Nenhum motoboy que se preza anda com outro na garupa. "Primeiro, porque levar um peludo atrás é ruim, hein?", diz Rodrigo. "Depois, porque os PMs param todas as motos com dupla; pensam que é bandido."
Às 18h30, depois de rodar o dia inteiro, Rodrigo deixa o primeiro emprego em direção ao bico, de entregador de pizza. A prática é comum a muitos motoboys, alguns emendando mesmo com um terceiro turno na madrugada. Isso faz com que um acidente esdrúxulo seja cada vez mais comum: o do motoboy que dorme, não ao volante, mas ao guidão.
Como aconteceu com Ariston de Lemos, 28, que no mês passado vinha dirigindo pela marginal Tietê às duas da madrugada e cochilou. Acordou três dias depois, num pronto-socorro, depois de ter sido encontrado pelos bombeiros com a cabeça aberta pelo guard-rail da pista. Na queda, quebrou a clavícula e o maxilar.
"Não me lembro de nada, só que estava com sono e não tinha dormido direito havia vários dias", conta ele, que saiu do episódio com uma cicatriz que cobre todo o lado direito do rosto. "Mas foi bom porque pude dormir três dias sem fazer entrega", brinca.
A crise econômica e a relativa facilidade para entrar no ramo têm feito o número de motoboys na cidade aumentar junto com a frota. Segundo Max de Paula, da CET, enquanto a frota de automóveis cresceu 9,5% nos últimos três anos, a de motocicletas pulou 26,5%.
Para conseguir um trabalho numa das 2.700 empresas que utilizam esses serviços na cidade, bastam carteira de motociclista e de identidade. Além disso, o Banco do Brasil tem o Financiamento Motoboy, que entrega R$ 5.000 (o valor de uma 125) nas mãos dos jovens, que pagarão prestações de R$ 150 em até 50 meses.
Como a remuneração média é de R$ 750, o negócio vale cada vez mais a pena. E os jovens já não são maioria. "A classe hoje é composta por gente entre 25 e 35 anos", afirma José Santos, do Setcesp, sindicato do setor.
Nessa categoria está Ariovaldo Donato, 36 anos, que tinha um estúdio fotográfico. Vendeu tudo, comprou a moto, pagou propina por uma carteira de habilitação de manhã ("Dei R$ 500, só não podia cair da moto, o resto valia tudo") e arrumou emprego à tarde.
A solução, diz a prefeitura, é que "pegasse" o decreto assinado por Marta Suplicy em 2001. A lei regulamenta a profissão e impõe uma série de regras que dificultam a ação do mau motorista e do mau empregador.
São 23h30. Rodrigo entregou sua última pizza. Despede-se dos amigos, que, como ele, largaram os estudos. Monta na moto e vai embora, não sem antes dar uma empinadinha. "Até que é boa essa profissão", diz, rindo.


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