São Paulo, sábado, 06 de agosto de 2005

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LETRAS JURÍDICAS

Renúncia ao mandato para fugir da cassação

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

A s leis penais reconhecem que, apesar da gravidade de certos delitos comuns, a pena correspondente ao crime não deve ser aplicada. Em certos casos, as atenuantes contribuem para sua substancial diminuição. Em outros, para resumir o essencial, houve o delito, a pena foi imposta ou pode vir a sê-lo, mas o direito punitivo do Estado deixou de existir, por prescrição (cessa o direito de ação), decadência (extingue-se o próprio direito de punir), ou perempção (esgotou-se o prazo em que a queixa era viável).
Assim, nem sempre o criminoso é punido. Os exemplos ilustram indiretamente o debate da semana sobre renúncias a mandatos parlamentares como meio de impedir a cassação, da qual resultaria a inelegibilidade em nova eleição. Acolher a renúncia é bom ou é ruim?
Penso que é ruim. Muito ruim e porque os critérios de inelegibilidades previstos pela lei complementar nº 64/90 facilitam a vida dos acusados hoje em foco, sob o risco de perderem mandatos. A inelegibilidade se destina a punir envolvidos em condutas as mais diversas. Compreendem desde procedimento ofensivo do decoro parlamentar até condenação criminal por sentença definitivamente julgada, por crime contra a economia popular, a fé e a administração públicas, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais.
Havendo condenação criminal, a pena se estende a um prazo próximo de oito anos subseqüentes ao término da legislatura.
Apesar da aparente dureza, na prática o resultado é pobre. O prazo dos processos pode ser estendido por muitos anos, durante os quais o político continua no exercício de suas funções, até porque a longa demora facilita a absolvição. Isso explica a causa de serem raras as carreiras políticas interrompidas por penas criminais -circunstância que, em São Paulo, é especialmente notória.
Dir-se-ia que, se o punido volta a ser eleito pelo povo, deve ter seu mandato respeitado, pois o povo é dono de todo poder. O atual exemplo do "mensalão", em que o poder corruptor "contrata" permanentemente o político, "alugando" sua adesão para os casos presentes e futuros, mostra o perigo. A corrupção do varejo passou ao atacado.
Os clássicos casos legais de inelegibilidade são estranhos aos que hoje agitam o noticiário e explicam a preocupação com o assunto. O ordenamento é severo, para as providências cabíveis contra a ilicitude, mas mesmo assim o resultado final é demorado ou inútil, apesar da exemplar agilidade da Justiça Eleitoral.
A lei complementar nº 64 tem regra específica (artigo 19) sobre o que denomina "transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político".
Em matéria de "valores pecuniários" vemos que apuração e punição não protegem "a normalidade e legitimidade das eleições", quando a renúncia ao mandato permite fugir à cassação. A remessa posterior dos autos ao Ministério Público Eleitoral para instauração de processo-crime não melhora a avaliação.
A solução estaria no cumprimento mais severo do parágrafo 4º do artigo 55 da Carta Magna, pelo qual a renúncia de parlamentar acusado, por fato que leve ou possa levar à perda do mandato, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais do processo instaurado de julgamento do faltoso. Para terminar, há uma curiosidade histórica: quem assinou a lei complementar nº 64/90, com as normas que acabo de resumir, foi o ex-presidente Fernando Collor.

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