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TRAGÉDIA EM CONGONHAS/ENTREVISTA
Lobby atrasa adoção de regras de segurança, diz coronel
Agências cedem a pressões, afirma ex-chefe de órgão de prevenção de acidentes
Para o coronel Antonio
Junqueira, investigação
sobre causas do acidente
com avião da TAM não está
sendo feita como deveria
ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL
O objetivo das investigações
de acidentes aéreos -identificar causas para evitar ocorrências futuras- não tem sido plenamente alcançado no mundo
inteiro por conta da pressão
econômica das empresas, que
resistem a adotar recomendações de segurança da aviação
que impliquem aumento de
custos.
A avaliação é do coronel Antonio Junqueira, ex-chefe do
Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes
Aeronáuticos) e hoje na reserva. Ele era vice-diretor do órgão
na investigação do acidente
com um Fokker-100 da TAM
que deixou 99 mortos em 1996,
durante a gestão FHC, e prestou serviços à FAB até este ano.
Junqueira avalia que a prevenção de acidentes aéreos tem
sido prejudicada porque algumas sugestões de segurança
não se tornam obrigatórias
-por falha dos órgãos reguladores, que cedem a lobbys- e
as companhias aéreas "vão empurrando com a barriga".
O fato de um jato comercial
pousar em Congonhas, depois
de chover, com um reverso inoperante (condição do Airbus-A320 que se acidentou no dia
17), é um caso emblemático.
"O avião está com reverso pinado e mesmo assim é liberado
para pousar em pistas críticas?
Legalmente tudo bem, mas
moralmente me perdoe..."
O coronel, que diz ser amigo
do brigadeiro Jorge Kersul Filho, atual chefe do Cenipa, declara também considerar comprometida a investigação da maior tragédia da aviação brasileira devido à ampla divulgação já feita da caixa-preta.
Além do descumprimento de normas internacionais, Junqueira avalia que qualquer conclusão diferente do que foi especulado cairá em descrédito e
que a tendência é haver resistência de pilotos em colaborar
no futuro. "Nunca mais teremos uma investigação decente." Leia trechos da entrevista:
FOLHA - Qual é a opinião do sr. sobre o modo como está sendo conduzida a investigação do acidente da
TAM?
ANTONIO JUNQUEIRA - A investigação não está sendo feita como deveria. Ela deveria ser feita com um máximo de isenção e
sem fatores intervenientes, como pressão e ingerência de pessoas não ligadas ao processo.
Isso só tende a criar algum tipo
de atropelo. Tempos atrás, não
havia essa sofreguidão tremenda de tornar pública toda e
qualquer descoberta da investigação. Hoje, talvez por coincidência com a CPI que está em
curso, [os deputados] resolveram que também devem participar. É como se estivesse havendo um trabalho cirúrgico num paciente e, de repente,
chegassem leigos e dissessem:
"Aproveita e corta aqui". O médico vai dizer: "Meu filho, deixa
a gente acabar a cirurgia, daí a
gente dá a explicação, mas não
interfira senão ele vai morrer".
FOLHA - Essas interferências podem comprometer os resultados?
JUNQUEIRA - Sim. O chefe do
Cenipa, meu amigo Kersul, tem
manifestações de desespero
porque isso está sendo feito de
forma açodada. Caixa-preta
nunca foi instrumento para
chegar e ler como se estivesse
lendo uma cartilha. Ela tem
que ser interpretada por especialistas. Os dados precisam ser
conjugados com outros.
FOLHA - Mas a investigação já está
comprometida?
JUNQUEIRA - Já está afetada. Suponha que, no decorrer da investigação, a comissão conclua
por uma coisa que não tem a
ver com esses fatos iniciais. Vai
cair no descrédito. Alguém vai
dizer: "No começo disseram
que era manete fora da posição,
agora dizem que é sistema de
automação ligado ao piloto automático". Em quem a gente
vai acreditar? Ou seja, conseguiram inserir um clima que, ao
final, ficará até sem crédito.
FOLHA - É irreversível?
JUNQUEIRA - Na medida em que
a Câmara começa a produzir
factóides a partir de juízos precipitados da investigação e a
imprensa os divulga, você cria
fatos que, ao final, se aparecer
com respostas diferentes, em
que vão acreditar?
FOLHA - Mas a população tem direito a ser informada.
JUNQUEIRA - O Sipaer [serviço
de prevenção de acidentes] só
interessa para corrigir as falhas, e não [para] produzir respostas para atender à população. Quem tem de atender à população e aos familiares são os
órgãos policiais. Em todos os
demais acidentes nunca mais
teremos caixa-preta....
FOLHA - Por quê?
JUNQUEIRA - Porque a caixa-preta é um instrumento aceito
pelos pilotos de modo próprio.
A profissão de aviador é talvez a
única em que você trabalha
grampeado a todo momento.
Se você faz um gracejo sobre
uma comissária bonita, se faz
uma crítica à empresa, é um
ambiente gravado. Nós pilotos
somente aceitamos essa condição em razão do entendimento
maior de que isso tem uma finalidade preventiva. O piloto
pode apagar [os dados] depois
de desligar os motores. O que
leva ele a descer do avião e deixar um monte de coisa gravada? É a certeza de que aqueles
dados têm uma finalidade exclusivamente preventiva.
Quando ele vê que a nação dá
publicidade a um instrumento
tido dessa forma, não teremos
nunca mais uma investigação
decente.
FOLHA - Então estão comprometidas também as próximas?
JUNQUEIRA - Com certeza. Imagine que, quando eu entrar na
cabine, vou ter que me policiar
a todo tempo para aquilo que
vou falar. O Cenipa tem que
convencer a Câmara de todas
as formas de que aquele material é valioso não só para a atual
investigação como para as próximas. O progresso das investigações futuras depende da tratativa que é dada a esse instrumento que é a caixa-preta.
FOLHA - O acidente da TAM de
1996 foi diferente no que?
JUNQUEIRA - Havia um outro
momento. Existe hoje um poder econômico muito forte em
cima das agências. Quem forçou a abertura do aeroporto de
Congonhas foi a própria Anac,
para atender aos interesses das
empresas. Isso torna a agência
vulnerável, foge completamente ao papel de regulamentar.
FOLHA - As recomendações de segurança após a investigação de acidentes aéreos são sempre adotadas?
JUNQUEIRA - Deixe-me fazer um
paralelo. Nos EUA, a FAA
[agência federal de aviação]
passa pelo mesmo problema da
Anac. Ela também, de certa forma, é mancomunada com as
empresas e muitas das recomendações feitas pelo Cenipa
americano, a FAA não cumpre.
O exemplo mais clássico é
aquele acidente da Valujet em
1996 [que deixou 110 mortos
nos EUA, após pegar fogo e cair
num pântano]. Havia inúmeras
recomendações de que as aeronaves deveriam ter sensores de
fumaça e extintores no porão
de carga. A FAA sabia, mas não
transmitia para as empresas,
porque dizia que iria provocar
um ônus, mais despesas. Aqui
no Brasil acontece muito disso.
O órgão de segurança de vôo
emite muitas recomendações
para os órgãos normativos, mas
é de se esperar que algum tipo
de alteração onerosa para as
empresas siga um caminho
mais lento. Dão prazo de um
ano e vem um ofício pedindo
mais um ano porque não foi
possível cumprir. Depois pede
mais um ano, mais um ano....
FOLHA - É generalizado?
JUNQUEIRA - Se você faz recomendações que implicam custos, meu amigo.... A empresa,
quando vê que está implicando
custo sem a devida compensação através da elevação de preços de passagem ou alteração
das malhas, reluta, pede prorrogações. Quando você emite
recomendações para que um
órgão normativo fiscalize as
empresas, você sente que há
uma relação de compadre.
FOLHA - Que recomendação, por
exemplo, é um absurdo que não tenha sido cumprida até hoje?
JUNQUEIRA - Ninguém faz nada
se não houver uma lei que obrigue. Por exemplo, esse caso de
voar com reverso travado [do
Airbus-A320 da TAM]. Tem
muitas coisas legais, mas imorais. A Vasp teve um acidente
nos anos 80 quando havia uma
determinação da Boeing para
ela trocar uma peça. Mas não
existia diretriz de aeronavegabilidade. Ou seja, a Vasp sabia
que aquela peça estava com
uma corrosão violenta, mas a
lei só existe quando há uma diretriz de aeronavegabilidade.
FOLHA - O caso do reversor da TAM
é a mesma lógica?
JUNQUEIRA - Eu vejo dessa forma. Se a aeronave está com problema no reversor e a legislação
autoriza ficar por dez dias assim, então os pousos devem ser
direcionados para pistas confortáveis. O reversor não faz
parte do programa de avaliação
de distância de pouso, mas auxilia. Se a pista de Congonhas
está molhada e pesam sobre ela
insinuações de que estaria escorregadia, então vamos pousar no Galeão, em Cumbica, em
Campinas, que são pistas de
mais de três quilômetros. O
avião está com reversor pinado
e mesmo assim é liberado para
pousar em pistas críticas? Legalmente, tudo bem, mas moralmente, me perdoe..... Enquanto não há uma documentação dizendo "atenção, não
pode pousar em Congonhas
sem reversores", eles vão empurrando com a barriga e alegam que o manual permite.
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