São Paulo, segunda-feira, 06 de agosto de 2007

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TRAGÉDIA EM CONGONHAS/ENTREVISTA

Lobby atrasa adoção de regras de segurança, diz coronel

Agências cedem a pressões, afirma ex-chefe de órgão de prevenção de acidentes

Para o coronel Antonio Junqueira, investigação sobre causas do acidente com avião da TAM não está sendo feita como deveria

ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL

O objetivo das investigações de acidentes aéreos -identificar causas para evitar ocorrências futuras- não tem sido plenamente alcançado no mundo inteiro por conta da pressão econômica das empresas, que resistem a adotar recomendações de segurança da aviação que impliquem aumento de custos.
A avaliação é do coronel Antonio Junqueira, ex-chefe do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) e hoje na reserva. Ele era vice-diretor do órgão na investigação do acidente com um Fokker-100 da TAM que deixou 99 mortos em 1996, durante a gestão FHC, e prestou serviços à FAB até este ano.
Junqueira avalia que a prevenção de acidentes aéreos tem sido prejudicada porque algumas sugestões de segurança não se tornam obrigatórias -por falha dos órgãos reguladores, que cedem a lobbys- e as companhias aéreas "vão empurrando com a barriga".
O fato de um jato comercial pousar em Congonhas, depois de chover, com um reverso inoperante (condição do Airbus-A320 que se acidentou no dia 17), é um caso emblemático. "O avião está com reverso pinado e mesmo assim é liberado para pousar em pistas críticas?
Legalmente tudo bem, mas moralmente me perdoe..."
O coronel, que diz ser amigo do brigadeiro Jorge Kersul Filho, atual chefe do Cenipa, declara também considerar comprometida a investigação da maior tragédia da aviação brasileira devido à ampla divulgação já feita da caixa-preta.
Além do descumprimento de normas internacionais, Junqueira avalia que qualquer conclusão diferente do que foi especulado cairá em descrédito e que a tendência é haver resistência de pilotos em colaborar no futuro. "Nunca mais teremos uma investigação decente." Leia trechos da entrevista:  

FOLHA - Qual é a opinião do sr. sobre o modo como está sendo conduzida a investigação do acidente da TAM?
ANTONIO JUNQUEIRA
- A investigação não está sendo feita como deveria. Ela deveria ser feita com um máximo de isenção e sem fatores intervenientes, como pressão e ingerência de pessoas não ligadas ao processo.
Isso só tende a criar algum tipo de atropelo. Tempos atrás, não havia essa sofreguidão tremenda de tornar pública toda e qualquer descoberta da investigação. Hoje, talvez por coincidência com a CPI que está em curso, [os deputados] resolveram que também devem participar. É como se estivesse havendo um trabalho cirúrgico num paciente e, de repente, chegassem leigos e dissessem:
"Aproveita e corta aqui". O médico vai dizer: "Meu filho, deixa a gente acabar a cirurgia, daí a gente dá a explicação, mas não interfira senão ele vai morrer".

FOLHA - Essas interferências podem comprometer os resultados?
JUNQUEIRA
- Sim. O chefe do Cenipa, meu amigo Kersul, tem manifestações de desespero porque isso está sendo feito de forma açodada. Caixa-preta nunca foi instrumento para chegar e ler como se estivesse lendo uma cartilha. Ela tem que ser interpretada por especialistas. Os dados precisam ser conjugados com outros.

FOLHA - Mas a investigação já está comprometida?
JUNQUEIRA
- Já está afetada. Suponha que, no decorrer da investigação, a comissão conclua por uma coisa que não tem a ver com esses fatos iniciais. Vai cair no descrédito. Alguém vai dizer: "No começo disseram que era manete fora da posição, agora dizem que é sistema de automação ligado ao piloto automático". Em quem a gente vai acreditar? Ou seja, conseguiram inserir um clima que, ao final, ficará até sem crédito.

FOLHA - É irreversível?
JUNQUEIRA
- Na medida em que a Câmara começa a produzir factóides a partir de juízos precipitados da investigação e a imprensa os divulga, você cria fatos que, ao final, se aparecer com respostas diferentes, em que vão acreditar?

FOLHA - Mas a população tem direito a ser informada.
JUNQUEIRA
- O Sipaer [serviço de prevenção de acidentes] só interessa para corrigir as falhas, e não [para] produzir respostas para atender à população. Quem tem de atender à população e aos familiares são os órgãos policiais. Em todos os demais acidentes nunca mais teremos caixa-preta....

FOLHA - Por quê?
JUNQUEIRA
- Porque a caixa-preta é um instrumento aceito pelos pilotos de modo próprio. A profissão de aviador é talvez a única em que você trabalha grampeado a todo momento.
Se você faz um gracejo sobre uma comissária bonita, se faz uma crítica à empresa, é um ambiente gravado. Nós pilotos somente aceitamos essa condição em razão do entendimento maior de que isso tem uma finalidade preventiva. O piloto pode apagar [os dados] depois de desligar os motores. O que leva ele a descer do avião e deixar um monte de coisa gravada? É a certeza de que aqueles dados têm uma finalidade exclusivamente preventiva.
Quando ele vê que a nação dá publicidade a um instrumento tido dessa forma, não teremos nunca mais uma investigação decente.

FOLHA - Então estão comprometidas também as próximas?
JUNQUEIRA
- Com certeza. Imagine que, quando eu entrar na cabine, vou ter que me policiar a todo tempo para aquilo que vou falar. O Cenipa tem que convencer a Câmara de todas as formas de que aquele material é valioso não só para a atual investigação como para as próximas. O progresso das investigações futuras depende da tratativa que é dada a esse instrumento que é a caixa-preta.

FOLHA - O acidente da TAM de 1996 foi diferente no que?
JUNQUEIRA
- Havia um outro momento. Existe hoje um poder econômico muito forte em cima das agências. Quem forçou a abertura do aeroporto de Congonhas foi a própria Anac, para atender aos interesses das empresas. Isso torna a agência vulnerável, foge completamente ao papel de regulamentar.

FOLHA - As recomendações de segurança após a investigação de acidentes aéreos são sempre adotadas?
JUNQUEIRA
- Deixe-me fazer um paralelo. Nos EUA, a FAA [agência federal de aviação] passa pelo mesmo problema da Anac. Ela também, de certa forma, é mancomunada com as empresas e muitas das recomendações feitas pelo Cenipa americano, a FAA não cumpre.
O exemplo mais clássico é aquele acidente da Valujet em 1996 [que deixou 110 mortos nos EUA, após pegar fogo e cair num pântano]. Havia inúmeras recomendações de que as aeronaves deveriam ter sensores de fumaça e extintores no porão de carga. A FAA sabia, mas não transmitia para as empresas, porque dizia que iria provocar um ônus, mais despesas. Aqui no Brasil acontece muito disso.
O órgão de segurança de vôo emite muitas recomendações para os órgãos normativos, mas é de se esperar que algum tipo de alteração onerosa para as empresas siga um caminho mais lento. Dão prazo de um ano e vem um ofício pedindo mais um ano porque não foi possível cumprir. Depois pede mais um ano, mais um ano....

FOLHA - É generalizado?
JUNQUEIRA
- Se você faz recomendações que implicam custos, meu amigo.... A empresa, quando vê que está implicando custo sem a devida compensação através da elevação de preços de passagem ou alteração das malhas, reluta, pede prorrogações. Quando você emite recomendações para que um órgão normativo fiscalize as empresas, você sente que há uma relação de compadre.

FOLHA - Que recomendação, por exemplo, é um absurdo que não tenha sido cumprida até hoje?
JUNQUEIRA
- Ninguém faz nada se não houver uma lei que obrigue. Por exemplo, esse caso de voar com reverso travado [do Airbus-A320 da TAM]. Tem muitas coisas legais, mas imorais. A Vasp teve um acidente nos anos 80 quando havia uma determinação da Boeing para ela trocar uma peça. Mas não existia diretriz de aeronavegabilidade. Ou seja, a Vasp sabia que aquela peça estava com uma corrosão violenta, mas a lei só existe quando há uma diretriz de aeronavegabilidade.

FOLHA - O caso do reversor da TAM é a mesma lógica?
JUNQUEIRA
- Eu vejo dessa forma. Se a aeronave está com problema no reversor e a legislação autoriza ficar por dez dias assim, então os pousos devem ser direcionados para pistas confortáveis. O reversor não faz parte do programa de avaliação de distância de pouso, mas auxilia. Se a pista de Congonhas está molhada e pesam sobre ela insinuações de que estaria escorregadia, então vamos pousar no Galeão, em Cumbica, em Campinas, que são pistas de mais de três quilômetros. O avião está com reversor pinado e mesmo assim é liberado para pousar em pistas críticas? Legalmente, tudo bem, mas moralmente, me perdoe..... Enquanto não há uma documentação dizendo "atenção, não pode pousar em Congonhas sem reversores", eles vão empurrando com a barriga e alegam que o manual permite.


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