São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998

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OPINIÃO
ONGs e meninos de rua


SILVIO CACCIA BAVA

O presidente vem surpreendendo muitos de nós com suas declarações. Depois do episódio em que chamou boa parte dos aposentados (e a si próprio!) de vagabundos, atacou as organizações não-governamentais, declarando que "deve ter mais gente trabalhando nas ONGs que tratam dos meninos de rua do que crianças nas ruas" (Folha, 31 de julho).
FHC declarou, minimizando o problema, que "não há mil meninos de rua em São Paulo" e que se deve distinguir "entre os meninos que vivem na rua e os que têm família e só andam nas cidades."
À parte o comentário de que, se houver menos de mil meninos de rua, a questão não é grave, os últimos dados disponíveis, de 96, registram 7.169 meninos de rua na cidade de São Paulo. Hoje, com o recorde do desemprego na Grande São Paulo (19% no total, com incríveis 30% nas camadas mais pobres), eles seguramente são mais.
A pesquisa diz que dormem nas ruas 1.465 crianças e que 5.704 "andam pela cidade", isto é, pedem esmolas nos faróis para ajudar a família a comprar comida.
Pesquisa do Instituto Pólis sobre os beneficiários dos programas de renda mínima e bolsa-escola no Brasil mostra que esses meninos de rua são, na maioria, filhos de mulheres que são chefes de família, têm baixíssima escolaridade e não acham trabalho. O que nos remete ao tema do aprofundamento da pobreza e da exclusão social.
O relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento de 1996 aponta que os pobres no Brasil somavam 42 milhões, dos quais 16,6 milhões eram indigentes. Esses pobres são 30% da população brasileira e se concentram cada vez mais nas metrópoles (29% do total). No Estado de São Paulo, o mais rico do país, são mais de 5 milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza.
Num país com recursos abundantes, que dispõe de R$ 14 bilhões dos fundos do BNDES para financiar grandes múltis na compra da Telebrás, temos de conviver com a humilhação de não conseguir dar de comer às crianças que têm fome. Com R$ 7 bilhões/ano, menos de 1% de nosso PIB, não haveria mais brasileiros com fome, crianças ou adultos.
A pobreza e a concentração de renda continuam aumentando, e os efeitos redistributivos do Real foram mínimos. Vejamos a porcentagem da renda nacional que fica em mãos dos 50% mais pobres: 1960, 18%; 1970, 15%; 1980, 14%; 1991, 13,6%; 1993, 12,5%; 1994, 11,3%; 1995, 12,2%, sendo que os especialistas apontam, para 1996 e 1997, um maior empobrecimento dessa parcela. A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 1996 nos diz que, enquanto os 10% mais ricos detêm 46,8% da renda, os 10% mais pobres ficam com apenas 1%.
Pode-se observar essa mesma tendência na partilha da renda nacional entre salários de um lado e lucros, aluguéis e juros de outro. Recente pesquisa do IBGE sobre a evolução das contas nacionais aponta a seguinte participação dos salários na renda nacional: 1990, 45%; 1994, 40% (início do Plano Real); 1996, 38%. O comportamento da remuneração do capital apresenta uma dinâmica inversa: 1990, 33%; 1994, 38%; 1996, 41%.
Senhor presidente, não seria melhor que o governo reconhecesse a gravidade da nossa crise social e os erros na condução da política econômica, garantindo ao menos o direito da segurança alimentar para todos os brasileiros? Medidas como a bolsa-escola de Brasília e a renda mínima de Campinas (seguidas por mais de cem governos) ou o aumento do valor do salário-família (hoje, R$ 1 por criança) podem ser adotadas já.
De que vale aprovar um programa de renda mínima nacional se não se destinam recursos para ele e se os critérios de acesso impedem que os municípios mais pobres possam implementá-los?
Se essas medidas ocorrerem, as ONGs poderão se ocupar de outros temas: não haverá mais crianças "andando pelas ruas" nem mães desesperadas sem ter o que dar de comer a seus filhos.


Silvio Caccia Bava, 48, sociólogo, é diretor do Instituto Pólis e presidente da Abong (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais)



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