São Paulo, quarta-feira, 06 de outubro de 2004

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ARTE DE RUA

Obras que imitam quadros modernistas foram pichadas; intervenção da prefeitura no espaço provoca protestos

Guerra do grafite mancha túnel da Paulista

MARIO CESAR CARVALHO
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL

Os grafites com cópias de obras do modernismo no túnel que liga as avenidas Paulista e Doutor Arnaldo só ficaram limpos por pouco mais de um mês -eles foram pichados na última madrugada. Ontem, os estudantes que fizeram as cópias de Tarsila do Amaral, Portinari e Alfredo Volpi limpavam o spray sobre as obras. O buraco da Paulista, nome popular do túnel, é o mais tradicional espaço de grafite em São Paulo.
A disputa na Paulista é uma batalha anunciada. As obras modernistas que ocupam as duas paredes do túnel encobriram grafites que eram pintados ali há cerca de 15 anos. Os desenhos livres foram trocados por determinação da Secretaria das Subprefeituras.
Na última semana, um grafiteiro que se apresenta como Grow, 21, disse à Folha que sua turma atacaria os grafites oficiais -ele não revela a identidade por temer retaliações. "Eu e toda uma galera já combinamos e vamos atropelar [grafitar por cima] aquilo tudo. Vamos bombar", anunciou.
A troca dos grafites livres pela pintura patrocinada pela prefeitura não provocou indignação só nos mais radicais. Educadores e grafiteiros tradicionais criticam a intervenção oficial no espaço.
"Foram os grafiteiros que fizeram aquele espaço ficar legal. É um lugar tradicional e nobre da livre expressão", diz Rui Amaral, um dos precursores da arte de rua na cidade e o único que teve o trabalho preservado no túnel (um mural de fundo azul) pelo projeto dos modernistas. Amaral considera as cópias modernistas "um projeto social e educativo interessante". Mas diz não ter dúvidas de que estão no "lugar errado."
Se do ponto de vista educativo o trabalho tem defensores, a avaliação estética do conjunto obteve um julgamento unânime: "É horroroso, é um desserviço", diz Paulo Portella, coordenador do serviço educativo do Masp (Museu de Arte de São Paulo), considerado um dos melhores do país.
O projeto com reproduções de obras do modernismo é repleto de boas intenções. As paredes foram pintadas por pichadores, grafiteiros e estudantes da Vila Brasilândia, uma área violenta na zona norte de São Paulo. Todos participaram de oficinas de grafite no CEU (Centro Educacional Unificado) Paz. Chegaram ao buraco da Paulista, como é conhecido o túnel, a convite da prefeitura, segundo Almir Resende Pessoa, 32, conhecido como Lek, da ONG Revolucionart, que fez o projeto.
"Nossa proposta é de resgate da arte brasileira. Tem gente que conhece Da Vinci e Van Gogh e nunca viu um trabalho de Portinari e de Tarsila", diz. O resultado, segundo ele, é "lindo".

História apagada
O buraco da Paulista começou a ser grafitado nos anos 80. Entre 1988 e 1989, tornou-se um grande painel de grafite, segundo o antropólogo e jornalista Nelson Silveira, que defendeu uma tese de mestrado na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) sobre esse tipo de intervenção.
Segundo ele, a institucionalização do grafite começou na gestão de Luiza Erundina (1989-1992) na prefeitura. À época, acreditava-se que o grafite seria um anticorpo eficaz contra a pichação.
"Encobriram um espaço histórico do grafite. Reproduzir obras consagradas não acrescenta nada. Antes, havia trabalhos com qualidade estética", disse Silveira.
A arte-educadora Ana Mae Barbosa, professora aposentada da USP e ex-diretora do MAM (Museu de Arte Moderna), diz que tem saudades dos grafites encobertos, mas vê valores na reprodução das obras: "Cópias não estimulam ninguém a se interessar por arte, mas ajudam a população a conviver com o modernismo".
Portella, do Masp, acha que a qualidade do trabalho compromete qualquer boa intenção. "O que está lá não é Portinari, não é Volpi, não tem fidelidade, não tem nada a ver com a obra original. Muita gente que não conhece pode começar a conhecer de modo errado", afirma. Ele também critica a escassez de informações sobre os pintores e as obras.
Mesmo dentro da prefeitura, o projeto não é consensual. O coordenador da Juventude, Alexandre Youssef, defende que aquele é um espaço tradicional do grafite: "Mais cedo ou mais tarde, o grafite volta para lá. A transitoriedade faz parte da arte urbana".
Para o artista Rui Amaral, "muita gente prefere a estética do trabalho atual [feito com aerógrafos] do que a liberdade do spray".
Mas grafiteiros como Ricardo Viccario, 25, que tiveram seus desenhos cobertos, são menos ponderados. Para ele, o buraco da Paulista foi um espaço conquistado. "Muita gente foi presa quando fazia grafites ali", conta. Os artistas que ocupavam o local, para ele, foram jogados de lado: "Não tem essa de projeto da prefeitura. A cidade é de todo mundo e a rua é a nossa galeria".


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