São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2008

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MOACYR SCLIAR

Quem foi que votou em mim?


Fez sua inscrição e mandou confeccionar santinhos, mas tratou de espalhar que não queria voto nenhum

Denis da Silva candidatou-se a uma cadeira na Assembléia do Amapá e recebeu um voto. Roraima teve 11 candidatos com voto único, Amapá teve seis, Pernambuco, quatro e Rondônia, quatro. Em Maceió, Sebastião Malta, ao se inscrever no TRE, percebeu que não tinha chance de se eleger. Resolveu então apoiar o filho e abandonou a própria candidatura. Valter Cunha fez um voto para AL da Bahia. Em Alto Alegre, Roraima, Francisco das Chagas Pereira abdicou da própria candidatura e pediu que ninguém votasse nele. Mas o lavrador João Silva confiou-lhe seu voto. Folha de S.Paulo, Eleições 2002

A ÚLTIMA COISA que Armando queria era candidatar-se a um cargo eletivo. Não gostava de política, tinha horror a campanhas eleitorais. Gostava, mesmo, era de ficar em sua pequena loja de calçados, atendendo a um ou outro raro freguês, lendo o jornal, conversando com o dono da lanchonete ao lado.
Foi portanto com consternação que recebeu o convite para lançar sua candidatura a vereador. Convite, não. Na verdade, tratava-se de uma intimação. Presidente de um minúsculo partido -uma dessas obscuras siglas que ninguém sabe exatamente o que significa- o tio contava com o apoio de amigos e, sobretudo, de parentes, para reforçar a legenda.
Nessa lista, Armando estava no topo. Por boas razões: não era pequeno o número de favores que o tio lhe emprestara: conseguira-lhe um empréstimo para que pudesse montar sua loja, uma vaga num colégio próximo para o filho mais velho. Mesmo assim, tentou escapar àquela situação constrangedora. Foi falar com o tio, disse que não tinha vocação política, que não sabia como fazer campanha, que, para entrar naquilo, teria de sacrificar suas economias, isso num momento de crise mundial. O homem, porém, mostrou-se inflexível. Em desespero, Armando lançou mão de um último argumento: garantiu que não faria voto algum.
-Ouviu, tio? Nenhum voto! O tio sorriu, incrédulo. Nenhum voto? Impossível. Então fez uma promessa: se aquilo fosse verdade, se Armando não conseguisse um único voto, nunca mais o incomodaria. O que deixou Armando satisfeito: agora ele tinha, sim, uma possibilidade de escapar da política. Fez sua inscrição e até mandou confeccionar alguns santinhos, mas tratou de, imediatamente, entrar em contato com familiares, amigos, conhecidos, fregueses, fornecedores; a todos dizia que sua candidatura resultava de uma obrigação, e que não queria voto algum.
Veio a eleição, e ele votou em branco, mas o dia seguinte foi, como costuma sê-lo para os candidatos, de tensão e nervosismo. No caso dele, porém, a tensão e o nervosismo foram dando lugar à satisfação; de fato, urna após urna confirmavam a sua expectativa. Ele não tinha nenhum voto. Já estava se preparando para telefonar para o tio ("Eu não disse, titio?") quando veio a notícia inesperada, devastadora: numa urna de um bairro longínquo ele tivera um voto. Um único voto que, contudo, destruiu sua felicidade.
Agora ele está atrás desse misterioso eleitor, que é, disso ele tem certeza, um cúmplice do tio -e um inimigo dele, Armando. Precisa encontrar esse cara, precisa acertar as contas com ele. É uma causa, uma causa sagrada. Do mesmo tipo daquelas sagradas causas que, segundo muitos candidatos, representam a única razão pela qual pedem ao eleitor o seu voto.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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