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São Paulo, quinta-feira, 06 de novembro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

Jogador de futebol ou cirurgião?

Não será a primeira vez (nem a última) que me ocuparei de algumas das preciosidades do que costumo chamar de "titulês" (a língua dos títulos jornalísticos). Veja este exemplo, publicado nesta semana: "Ricardinho opera e chateia são-paulinos". Como diz a banca da Unicamp, a redação dessa frase gera "efeitos estranhos".
E quais seriam esses "efeitos estranhos"? Vamos direto ao ponto: a estrutura da frase permite que se deduza que o termo "são-paulinos" seja complemento de "chateia" e de "opera". Doutor Ricardinho operou os são-paulinos.
Temos aí a chamada ambiguidade estrutural, que o "conhecimento de mundo" se encarrega de desfazer. Como se sabe que Ricardinho não é cirurgião, entende-se o que o redator quis dizer.
Como resolver o problema? Bastaria ter colocado um "se" ("Ricardinho se opera e chateia são-paulinos") para que não houvesse nenhuma ponta de duplo sentido.
A esta altura, alguém talvez pergunte se a construção "Ricardinho se opera" não pode significar "Ricardinho opera a si mesmo". Rigorosamente, pode, mas é bom não exagerar, caro leitor.
Em "Ricardinho se opera e...", ocorre um processo que já comentei algumas vezes neste espaço. É da língua a inversão sintática que se vê, por exemplo, na passagem de "X operou o joelho direito de Y" para "Y operou(-se) do joelho direito". Não faltam registros desses usos de "operar" e de tantos outros verbos com os quais se consagra esse processo. Um exemplo conhecido (e muito usado) é o do verbo "vender": "Vende-se muito bem esse macarrão", "Vende muito bem esse macarrão", "Esse macarrão vende muito bem".
Voltando ao título jornalístico, é bom lembrar que uma das opções seria a construção passiva analítica (feita com o verbo "ser" + particípio): "Ricardinho é operado". Por sinal, nos vestibulares ainda é comum a exigência do conhecimento da operação necessária para que se transforme em passiva uma construção ativa.
Na última prova da Fuvest, o assunto foi abordado a partir deste trecho: "Décadas atrás, vozes bem afinadas cantavam no rádio esta singela quadrinha de propaganda". A banca pediu aos candidatos que reescrevessem a frase, substituindo a expressão "décadas atrás" por "ainda hoje" e transpondo a forma verbal para a voz passiva.
Como fazer? O complemento direto de "cantavam" ("esta singela quadrinha de propaganda") deve passar a sujeito da voz passiva. Não se pode esquecer que a substituição de "décadas atrás" por "ainda hoje" impõe o uso do verbo no presente. Vamos lá: "Ainda hoje, esta singela quadrinha de propaganda é cantada no rádio por vozes bem afinadas".
Deve-se tomar cuidado com a expressão "no rádio", que não deve ser posta no fim da frase ("...é cantada por vozes bem afinadas no rádio"), do contrário não nos livramos dos "efeitos estranhos".
 
Preciso pedir desculpa a Chico Amaral, autor da bela letra de "Casa Aberta", analisada na semana passada. Talvez na ânsia de participar da festa mineira, acabei trocando "Geralda" por "Geraldo" (personagem que devo ter assumido inconscientemente). Corrija-se, pois: "Dançam Geralda, Helena, Flor". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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