São Paulo, quinta-feira, 06 de dezembro de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

Acórdão e acordão

A presença e a ausência dos acentos podem indicar diferenças e/ou preferências léxicas e/ou semânticas

E RENAN CALHEIROS se safou de mais uma. No início da semana, analistas políticos bem informados e experientes já informavam, passo a passo, o roteiro do "acordão": Renan renunciaria à presidência do Senado antes da sessão que o absolveria da acusação etc.
Pois bem. Talvez pelo fato de a palavra "acórdão" me ser mais freqüente do que "acordão" (não raro faço trabalhos para pessoas ou entidades ligadas ao direito), sempre que vejo "acordão" nos títulos jornalísticos tenho a impressão de que quem a escreveu se esqueceu do acento agudo no "o". Uma rápida "ajeitada" no cérebro e, levado pelo contexto, caio na real e vejo que não se trata de "juridiquês", mas de "politiquês" mesmo -ou de falta de vergonha na cara, para usar o que o povo chama de "português claro".
"Acórdão" é termo jurídico, definido pelo "Aurélio" como "decisão proferida em grau de recurso por tribunal coletivo" e pelo "Houaiss" como "decisão final proferida sobre um processo por tribunal superior, que funciona como paradigma para solucionar casos análogos". Salvo engano, parece que os juristas não gostam de nenhuma das definições.
Cá entre nós, parece que, no caso da conduta do Senado em relação a Renan (e a outros), a definição de "acórdão" do "Houaiss" pode ser aplicada também a "acordão"...
Sob o aspecto da prosódia (parte da gramática que se dedica ao estudo da pronúncia das palavras e a outras particularidades da emissão dos sons da fala), "acórdão" é paroxítona e leva acento agudo justamente por ser paroxítona terminada em "ão"; "acordão" é oxítona, como "balão", "alemão", "sabão", "portão" etc.
Com a dupla "acórdão/acordão", a diferença de pronúncia e de grafia implica alteração no significado, mas nem sempre a coisa funciona dessa maneira. Em casos como o de "projetil" e... Antes de prosseguir, permita-me perguntar-lhe, caro leitor: como você leu "projetil"? Por acaso pôs força no "e"? Se pôs, errou a leitura, já que escrevi "projetil" e não "projétil", ou seja, escrevi uma oxítona, e não uma paroxítona.
Sim, já sei, você dirá que ninguém diz "projetil" (com força no "i"), ou seja, ninguém lê essa palavra como se lê "barril", "fuzil" ou "ardil". Pois é aí que mora o perigo. No ambiente militar, é muitíssimo mais freqüente a grafia "projetil" (e a pronúncia de acordo com essa grafia). Pode prestar atenção no pronunciamento de um especialista em balística. É muito mais provável que de sua boca saia "projetil" (e não "projétil").
Aonde quero chegar? Ao seguinte ponto: em português, a presença e a ausência dos acentos gráficos podem indicar preferências e/ou diferenças léxicas e/ou semânticas.
Quem procura "projétil" no "Aurélio" encontra esta orientação, curta e grossa: "V. projetil". Que significa isso? Que para esse dicionário a forma preferencial ou mais registrada é "projetil" (oxítona).
O diabo é que, em geral, as pessoas simplesmente ignoram o papel dos acentos na hora de ler uma palavra. Ainda que se escreva "projetil", a maioria lerá "projétil", forma mais difundida no uso geral. Dá-se o mesmo com a dupla "reptil/réptil". Em "réptil", o "Aurélio" manda procurar "reptil", forma desusada hoje, mas comum outrora na literatura especializada. É isso.


inculta@uol.com.br

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