São Paulo, domingo, 07 de janeiro de 2007

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DANUZA LEÃO

A mente


Os muito idosos -e ainda lúcidos- sabem que serão cada vez mais dependentes,e isso é muito triste


OUTRO DIA eu estava no cabeleireiro quando entrou uma velhinha bem velhinha, mas bem velhinha mesmo, com uma mulher mais jovem que era, visivelmente, sua acompanhante. A velhinha era simpática, risonha, com a cabeça toda branca, e começou a explicar como queria o cabelo: um pouquinho mais curto mas não demais, enfim, esses detalhes. A acompanhante se meteu na conversa, disse que não era bem assim, disse como devia ser o corte e a velhinha desistiu de repetir o que queria, para não criar caso.
A cena, sem importância aparente, me levou a pensar que não há nada no mundo pior do que depender. Crianças dependem, mas sabem que um dia serão donas de seus narizes, mas os muito idosos -e ainda lúcidos- sabem que serão cada vez mais dependentes, e isso é muito triste. Quem depende não tem vontade própria nem para as coisas mais banais: não vestem a roupa que querem, não comem a comida que gostam e não vão onde gostariam de ir: talvez ver o mar, talvez um jardim cheio de plantas. Quem pode tem uma acompanhante, que na maior parte das vezes exerce seu poder fazendo com que sua vida -dela, acompanhante- seja a melhor possível. A velhinha que a siga, gostando ou não.
Pensando bem, seria preciso uma pessoa muito boa, excepcionalmente carinhosa e sensível, para saber que aquela velhinha depende exclusivamente dela; como os filhos vão visitá-la ocasionalmente, é para eles que ela se mostra gentil, simpática, agradável, já que geralmente são eles que estão pagando seu salário, para terem seu sossego garantido.
Da velhice ninguém escapa, a não ser os que morrem jovens; então vamos tentar aceitá-la, mas implorando a Deus que com a cabeça funcionando. As dores, por piores que elas sejam, dá para suportar; se for preciso andar de cadeira de rodas -elétrica, de preferência- dá para se acostumar, só não dá é para viver com a mente que não funciona mais. Quando isso acontece, a pessoa se torna uma estranha, e não há nada mais doloroso do que olhar para alguém que você amou tanto e não reconhecê-la mais -e nem ela a você. O gostar se transforma em dor, pena e culpa, talvez maiores do que se ela tivesse morrido. A dor de saber que ela depende de outra pessoa para tudo, trocar uma blusa, comer, mudar de posição na cama, é difícil de suportar.
Deus, que é tão poderoso, poderia evitar esse fim de vida para qualquer pessoa. Um infarto fulminante é uma benção; morrer dormindo, uma festa que deveria ser comemorada pelos que ficam com champanhe e fogos de artifício.
Mas por que castigar a tal ponto algumas pessoas? E não só a elas, mas a todas que a conheceram jovem, com os olhos brilhando, viva, enfim? Com todo respeito a todos os deuses de todas as religiões, esse mundo é muito malfeito. Malfeito e mau, pois ninguém merece certos sofrimentos, e ser privado do funcionamento da mente talvez seja o pior deles. E que nenhum desses deuses leia esta crônica e me castigue.

danuza.leao@uol.com.br


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