São Paulo, quinta-feira, 07 de janeiro de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

"FAB prefere caça sueco a francês"


Se você prefere a tradição, vá de "Preferir algo a algo", mas não fique arrepiado quando ouvir "do que ter aquela..."

ESTAVA NA MANCHETE DA FOLHA de ontem: "FAB prefere caça sueco a francês". Como se vê, o jornal optou pela regência culta de "preferir" ("preferir algo a algo"; "preferir futebol a vôlei"). Essa regência segue o que a tradição gramatical dá como padrão e que, de certa forma, é abonado por todos os dicionários e guias de uso.
Por que a observação "de certa forma"? Antes disso, talvez convenha lembrar que, na fala e em muitos registros escritos, o uso de "preferir" é um pouco diferente do que prega a tradição. A regência predominante é "preferir uma coisa do que outra" ("preferir futebol do que vôlei").
Existe ainda o uso (muito comum) de termos intensificadores, como "(muito) mais", "mil vezes" etc., o que também é recusado pela tradição da língua, que se apega à etimologia para descartar essas construções (de origem latina, "preferir" significa "levar adiante", "levar à frente", "pôr em primeiro lugar").
Voltando à questão da observação relativa ao abono que os guias de uso e dicionários dão à regência tradicional de "preferir", cabe esta explicação: quando se procura "preferir" nos dicionários e nos guias de uso, encontram-se, primeiro, exemplos do uso "culto" ("Preferiu pintar a ser médico"; "Ela prefere ficar em casa a ir a um show" [Houaiss]; "...preferiu a morte à rendição"; "...prefere desagradar a transigir" [Maria H. de M. Neves]; "Prefiro acordar cedo a tomar um ônibus lotado de manhã"; "Prefiro morrer a fugir como covarde" [Aulete]); "Preferiu morrer a ser traidor"; "...preferia-os em tudo aos brasileiros" [Aurélio]). Alguns dos exemplos não são dos dicionaristas, mas de escritores citados por eles.
Só depois de citarem os exemplos em que se usa a regência tradicional, é que as referidas obras fazem (pertinentes) observações a respeito das outras construções. Diz o "Houaiss": "O uso, embora frequente no Brasil, de preferir seguido de do que não é aceito pela norma culta da língua, embora se abone em escritores modernos e clássicos; o mesmo quanto a preferir antes, construção de expressividade pleonástica".
O ótimo "Aulete" (disponível no UOL) diz isto: "As construções "Prefiro mais doce do que salgado", "Preferia frio do que calor", embora não aceitas pela norma culta, são abonadas com autores consagrados da língua portuguesa".
A professora Maria H. de M. Neves explica que, "exatamente por esse significado de valor comparativo, o falante muitas vezes é levado a expressar o que seria o complemento da comparação (complemento iniciado por do que ou por em vez de)". Como se vê, mutatis mutandis, todos os autores dizem mais ou menos o mesmo, daí a pergunta (que não quer calar): por que as construções tidas como "erradas" só aparecem separadas e depois de todas as observações em relação à oposição "tradição x uso real"?
Encerro com o professor Celso Luft, que em seu "Dicionário Prático de Regência Verbal", depois de uma série de considerações a respeito do que falamos, fecha assim o verbete relativo a "preferir": "Mesmo assim, em linguagem culta formal, cabe a sintaxe primária: preferir algo ou alguém a...".
Quem não é especialista no assunto talvez fique piradinho. O que se quer dizer é o seguinte, caro leitor: se você prefere a tradição, vá de "Preferir algo a algo", como fez Chico Buarque em "Geni e o Zepelim" ("A dormir com homem tão nobre, tão cheirando a brilho e a cobre, preferia amar com os bichos"), mas não fique arrepiado quando ouvir Raul Seixas dizer que prefere ser "essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha...".
É só uma questão de roupa, digo, de adequação à situação. É isso.

inculta@uol.com.br


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