São Paulo, sexta-feira, 07 de janeiro de 2011

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Sem escolha

Expedição protagoniza na Patagônia o maior Drama do montanhismo: deixar para trás um companheiro ferido e semiconsciente

LAURA CAPRIGLIONE
DE SÃO PAULO

A imensa agulha de granito fincada na Patagônia (sul da Argentina), chamada Monte Fitz Roy, 3.405 metros de altitude, presenciou, na última segunda-feira, o maior de todos os dramas do montanhismo.
Foi quando a experiente escaladora Renata (Kika) Bradford, 34, tomou a decisão de deixar para trás, semiconsciente e com uma grave fratura no osso da bacia, mas ainda vivo, o seu amigo de vários anos e colega de escalada Bernardo Collares, 46, presidente da Federação de Montanhismo do RJ.
Os dois tinham acabado de conquistar o cume do Fitz Roy e iniciavam a descida pela parede de rocha nua -Bradford na frente, Collares depois. No primeiro rapel (descida por cordas), a montanhista chegou a salvo.
Quando foi a vez de Collares, não se sabe por que, o equipamento falhou. Em queda livre por 20 metros (altura de um edifício de sete andares), o corpo do escalador chocou-se de lado contra um platô à velocidade 72 km/h.
Na quarta-feira à tarde, desenrolou-se o segundo maior drama do montanhismo. Foi quando Bradford, exausta, depois de enfrentar sozinha a descida (quase sem dormir, já que deixara o saco de dormir com Collares) e de andar pelo glaciar que envolve o sopé do Fitz Roy, chegou ao acampamento de base.
Tinha a expectativa de que se enviasse uma equipe de socorro para resgatar o amigo, mas logo foi convencida de que não dava. Médicos alpinistas, escaladores e autoridades argentinas decidiram considerar o brasileiro, a priori, morto. E desistiram.
O monte Fitz Roy é considerado um dos grandes desafios do montanhismo. Tem 1.800 metros de paredes verticais (seis Pães de Açúcar).
A temperatura no cume nesta época do ano (verão no hemisfério Sul) bate nos -5ºC.
Mas o principal obstáculo mesmo é o mau humor e a imprevisibilidade do clima -montanhistas chamam a região de "Putagônia".
"O vento é tão terrível que é capaz de levantar do chão um homem com mochila carregada de equipamentos", explica Silverio Nery, 54, presidente da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada, que já enfrentou outras montanhas da área.
"Ali, tranquilamente, o escalador se depara com ventos de 150 km/hora."
Bradford e Collares já haviam tentado conquistar o Fitz Roy na virada de 2009 para 2010. Experientes, esperaram meses pelo que os montanhistas chamam de "janela" -um período de trégua climática, uma folga da natureza. Não houve nenhuma. Tiveram de desistir.
Sobre a angústia da espera pela "janela", Bradford escreveu: "Escalar em Chalten [povoado onde fica o Fitz Roy] é aprender a entender de previsão de tempo e ter paciência."
Na quarta-feira, quando Bradford "chegou com a notícia de que o brasileiro, com a bacia quebrada, estava preso lá em cima, tomou-se a única decisão que os protocolos de salvamento permitem", afirmou André Ilha, 51, escalador há 36 anos e amigo pessoal de Collares.
"A regra básica do resgate é não gerar novas vítimas. E seria isso o que ocorreria se houvesse a tentativa de resgate no momento", disse.
"Ainda que houvesse um helicóptero disponível, com piloto experiente e treinado, os ventos eram tão fortes, que um resgate aéreo certamente se encerraria com a aeronave arremessada contra a parede rochosa."
Por outro lado, se a opção recaísse pelo resgate a partir da base, "a subida com uma maca rígida (necessária por causa da fratura do osso da bacia) e a descida [com Collares] demorariam pelo menos cinco dias. Somem-se mais os dois dias que a Kika demorou para descer e teríamos sete dias entre o acidente e a chegada dele a um hospital.
Pelos relatos que tivemos, o nosso amigo não deve ter resistido até o dia seguinte".
Segundo Ilha, a montanhista lhe disse por telefone que depois da queda Collares ficou inconsciente. "Ela conseguiu trazê-lo de volta por um tempo, então ele tornou a cair inconsciente. De novo, Kika o reanimou. Foi quando ele disse a ela que partisse."
"Certamente, essa foi decisão mais difícil da vida da Kika. Ela está arrasada, mas todos nós sabemos que foi feito o que poderia ser feito", disse o amigo comum e escalador Julio Mello. Ainda não se sabe se o corpo de Collares será resgatado -quando surgir uma "janela"- ou se ficará no Fitz Roy para sempre.

FOLHA.com
Ouça o relato de André Ilha, amigo do alpinista, sobre o acidente, com base em declarações de Renata Bradford
folha.com.br/mm856017


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