São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

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ENTRE DOIS MUNDOS

No giro pelas favelas do Rio, empresários ganham bufê no baile funk e choram em apresentação de violinistas

No passeio, paulista pega fila e come na laje

DA ENVIADA ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO

No tour dos 21 jovens empreendedores da Fiesp, foram percorridas, em três dias, comunidades pobres do Rio como o morro do Cantagalo, o complexo de favelas do Alemão e Parada de Lucas. Veja a seguir o diário da visita guiada pelo AfroReggae. (LC)

MORRO DO CANTAGALO
O edifício com a altura de 40 andares encarrapitado no morro do Cantagalo, com vista espetacular para a lagoa Rodrigo de Freitas, deveria ter sido o hotel Panorama. Diz-se que até dinheiro da rainha da Inglaterra entrou no investimento. Mas, abandonado na fase de acabamento, o prédio ficou largado até 1983, quando o governador Leonel Brizola desapropriou-o para construir um Ciep (Centro Integrado de Educação Pública), escola em período integral, jóia da coroa do seu governo.
Como o prédio fosse muito grande, mesmo com os 800 alunos do Ciep, sobrou espaço. Resultado: ali se instalou uma espécie de onglândia carioca -tem a sede do Criança Esperança, organização não-governamental da TV Globo e do Unicef, tem a Biblioteca do Futuro, tem o AfroReggae e muito mais -um total de 20. Cada ONG levando equipamentos e dinheiro para a comunidade, e produziu-se um território de gente pobre com recurso de condomínio rico.
Lá se encontram piscina, teatro, anfiteatro, cursos de circo, aulas de música, teatro e cenografia, oficinas de TV, cursos de edição, cameraman e cenografia para televisão. Também tem um centro de internet, com aulas de informática à disposição da comunidade, biblioteca, gibiteca.
Foi esse local que o bonde de 21 "playboys", a bordo de três vans climatizadas e com película escura no vidro, invadiu na sexta-feira retrasada. Acostumados a celebridades subindo e descendo (Xuxa, Didi Mocó e Gilberto Gil já estiveram lá), os moradores da favela nem ligaram para os microônibus engatados em 1ª, escalando a ladeira íngreme de ruas estreitas do morro do Cantagalo (aliás, debruçado sobre o bairro de Ipanema).
Levados ao auditório construído pelo AfroReggae ao custo de R$ 400 mil, os visitantes assistiram a meninos favelados dançando, cantando, tocando, fazendo acrobacias de circo (um dos instrutores, Bebel, um rapaz fortíssimo, chegou a atuar no renomado Cirque du Soleil).
Nos pés, na cabeça e na roupa, de muitos deles, uma Niketown (megaloja da marca, como as existentes em cidades como Nova York ou Los Angeles). Era Air Max Breathe 3, Air Zoom Vapor 3; Huarache 2k5 iD Premium; todos os modelos Shox -nomes de tênis que os meninos da favela citam com intimidade.
Os visitantes notaram a profusão de tênis lindos, novíssimos e custando até R$ 700 nos pés dos favelados que também tinham "bombetas" (bonés) e camisas Nike. Enquanto isso, o diretor do Comitê de Jovens Empreendedores da Fiesp, Ronaldo Koloszuk, tinha um mero All Star de R$ 54 nos pés. A humildade paulista só foi quebrada por um tênis Prada branco velhinho, nos pés de um jovem incorporador imobiliário.
Os paulistas começaram a se preparar para visitar as favelas cariocas há 40 dias, mais ou menos na época em que o rapper MV Bill divulgou, pelo "Fantástico", o documentário "Falcão - Meninos do Tráfico", em que se mostravam garotos-soldados em ação.
Entre os jovens que visitaram os morros e favelas, poucos ousaram confessar às mães a intenção de fazer a aventura. O empresário de ensino Sylvio Araujo Gomide, 27, membro da Comissão de Responsabilidade Social da Fiesp e do CJE, por exemplo, contou apenas que ia ao Rio conhecer os projetos do AfroReggae. Só na volta disse que tinha subido em áreas controladas por traficantes armados de fuzis. Assustou a mãe.
"Eu sou a mosca que pousou na sua sopa", cantou o vocalista negro da banda AfroReggae, Anderson de Sá, o olhar fixo sobre os "jovens empreendedores da Fiesp", e a voz distorcida por um modulador, como os utilizados em reportagens policiais na TV.

COMPLEXO DO ALEMÃO
Todos embarcados nas vans, agora o destino é o complexo do Alemão, conjunto de 11 favelas na zona norte, 280 mil moradores, local onde o jornalista Tim Lopes foi assassinado, em junho de 2002. Eram 23h40 quando o bonde da Fiesp topou com o primeiro bloqueio policial. "Bloqueio? Isso aí a gente chama de "blitz do real". Passou por ela, você tem de morrer com uma grana", explicou um morador. Até entrar na favela, foram seis blitze. Polícia demais, com fuzis M-16 em punho. Mas, no complexo, polícia não entra (se quiser muito, invade).
O acesso às ruas fechadas por trilhos de trem espetados no chão é difícil. As vans agora têm de acender as luzes da cabine, para que se veja quem vai dentro -se o veículo que chega é "amigo", tira-se o trilho para dar passagem.
Meninos risonhos fazem gestos estranhos com os dedos da mão direita. Parece um "v" da vitória que cai de lado e volta a ficar de pé. Alguns paulistas retribuem o que parece ser um cumprimento e também fazem o "v" com os dedos. Até que um cicerone esclarece: "Eles estão "escrevendo" CV, CV, CV, CV, de Comando Vermelho". Ah, bom. Dedos de branquelas visitantes encolhem-se.
Amsterdã, Zurique, posto 9 (Ipanema), onde se viu ou se vê o consumo aberto de drogas, não são páreo para o complexo. Os paulistas descem das vans. Um deles vê uma fila bem organizada e, paulista que é, entra nela, imaginando ser a fila para entrar no baile funk que todos sabiam ser o destino do passeio.
Logo, nota que entrara na fila de uma barraca de cocaína, onde garotos esticavam caprichosamente carreiras de pó, para consumo de narizes vorazes. "Proibido fotografar", avisa o produtor JB, do AfroReggae, ele mesmo ex-traficante, vinculado ao CV.
A passeatinha de paulistas vai andando pela rua principal e trombando com dezenas de favelados que despejam -sem economizar- cocaína em cima de folhas de papel, depois enroladas como canudos que serão vertidos diretamente nas narinas dos usuários. Droga demais.
O cigarro de maconha normal, lá, não pode ser apelidado de "fininho". Com diâmetro de 1,5 cm e comprimento de 10 cm, a brasa grande brilhando na escuridão, parece um charuto. Não se vêem meninas fumando ou cheirando -mesmo as chamadas "cachorras", as que se contorcem na dança erótica do funk.
Nas caixas do baile, o bate-estacas marca o ritmo de uma música cujo refrão é "Eu vou f... você em pé. Eu vou, vou f... você em pé". O telão mostra cenas de terremoto, tsunami, perseguições policiais, acidentes de carro, nocautes de lutas vale-tudo -gente sofrendo.
Quando a passeatinha alcançou a quadra do baile funk, 5.000 pessoas dançando, teve de abrir espaço para um automóvel Corsa prateado, vidros abertos, canos de oito fuzis à mostra, movendo-se vagarosamente. O Corsinha vai. O Corsinha vem. Vai de novo. Vem mais uma vez. Os traficantes queriam ser vistos. Os paulistas são levados para um "camarote vip".
Logo na entrada, uma placa adverte: "É proibido consumir drogas no camarote". Tudo de graça, tem uísque Red Label, Red Bull, cerveja, mesa farta de frios, empadinha, coxinha, croquete, bolinho de queijo. "Eu que preparei esse bufê, para homenagear os visitantes de São Paulo", avisa Rair Menezes, 36, negro forte, dois metros de altura, bata vermelha, chapinha no cabelo e sombra nos olhos. Ninguém paga para entrar em baile funk. Nem precisa. O dinheiro circula fora, nas muitas barraquinhas que vendem de tudo -de CDs de música a pó. O baile é ferramenta de marketing. Serve para juntar os consumidores.
Um dos organizadores do baile, Rair é respeitado no complexo. A dona de uma barraca de cerveja lembra-se dele, desarmado, desancando o valentão que tentou entrar no baile com um fuzil: "Sai daqui, moleque, eu falei que não queria ninguém armado aqui". Na quadra, MC Playboy, 40, cinco filhos, ganhador do DVD de Ouro da Furacão 2000. Dois celulares na cintura, Playboy tem no pescoço um cordão de ouro com um pingente de 7 cm em forma de cifrão -ah, é cravejado de brilhantes. Na orelha, um brinco também de brilhantes com uma miniescultura do jogador norte-americano de basquete Michael Jordan. E tem o infalível tênis Nike.
JB, que acompanha Playboy, diz que o amigo é exemplo na comunidade. "Ele anda assim para mostrar que tem saída. Que não precisa entrar para o tráfico para ter direito a um tênis bacana."
MC Playboy é divulgador do trabalho do AfroReggae no complexo do Alemão, onde já funcionam oficinas de percussão, teatro, música e dança. "Eles conseguiram o respeito até do traficante. Eu já vi chefão daqui dizendo que preferia que o filho seguisse o AfroReggae a entrar no crime", diz Playboy. Agora, o DJ anuncia: "A putaria venenosa. Êêêê, ela é venenosa". Os jovens paulistas saem do baile às 4h14.
No dia seguinte, sábado, às 11h, as vans passam pelos hotéis Copacabana Palace, Méridien e Everest recolhendo os aventureiros para conduzi-los a outro passeio. Preço mínimo só pela hospedagem: R$ 250 por dia, para ficar em quarto duplo, pagos pelos jovens.

PARADA DE LUCAS
Comunidade com 8.000 habitantes, Parada de Lucas é controlada pelo Terceiro Comando Puro. Ali, o AfroReggae mantém oficinas de informática (387 alunos), violino (12), capoeira (60), história em quadrinhos (30), capoeira (60), teatro (20) e webdesign (10), além de alfabetização de adultos.
Quando os pequenos violinistas, sob a batuta da professora negra Frida Basilio Barros, 25, começam a tirar a melodia de "Brilha, brilha estrelinha", os olhos de três visitantes lacrimejam.
O AfroReggae tem tecnologia para receber extrafavelados. Há um mês, um passeio semelhante foi feito por 200 filantropos nipônicos, que chegaram ao Rio de Janeiro em um navio especialmente fretado para "tours" sociais.

VIGÁRIO GERAL
O próximo passo foi a visita a Vigário Geral, favela onde aconteceu o assassinato de 21 pessoas, em 1993, conhecido como chacina de Vigário Geral. A comunidade, controlada pelo Comando Vermelho, também é famosa por manter a guerra urbana mais antiga da cidade, contra a vizinha Parada de Lucas.
O pedreiro Antonio Fernando da Silva convida os paulistas a visitar sua casa, Playstation 2 na sala e três televisores de 29 polegadas. Convite aceito, ele anuncia para a mulher: "Selma, olha, os americanos vieram visitar a gente". Referia-se aos meninos da Fiesp.
As ruas de Vigário Geral foram recentemente concretadas pelo programa Favela-Bairro, da prefeitura. "Parece até cenário de novela", afirma Mariana Brunini, 27, do Comitê de Responsabilidade Social da Fiesp, que conheceu favelas bem mais "selvagens" na Índia e em São Paulo, onde trabalhou com ONGs.
De repente vem a ordem: "Nada de fotos". O grupo chegou à boca, cheiro forte de fumo. Bem no meio dela, o AfroReggae quer construir um centro cultural que funcione sem parar. "A boca funciona 24 horas, então temos de funcionar 24 horas também, se quisermos criar um "point" alternativo ao dos traficantes", diz José Junior. Custará R$ 3 milhões.
O passeio termina com um autêntico programa de favelado: almoço na laje que cobre a casa do vocalista do AfroReggae, Anderson de Sá. Refrigerante, arroz, feijão, frango, peixe, maionese, farofa, muito bacon. A juventude dourada paulista se refestela e a paz -pelo menos naquela hora- reina entre ricos e pobres.


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