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ENTRE DOIS MUNDOS
No giro pelas favelas do Rio, empresários ganham bufê no baile funk e choram em apresentação de violinistas
No passeio, paulista pega fila e come na laje
DA ENVIADA ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO
No tour dos 21 jovens empreendedores da Fiesp, foram percorridas, em três dias, comunidades
pobres do Rio como o morro do
Cantagalo, o complexo de favelas
do Alemão e Parada de Lucas. Veja a seguir o diário da visita guiada
pelo AfroReggae.
(LC)
MORRO DO CANTAGALO
O edifício com a altura de 40 andares encarrapitado no morro do
Cantagalo, com vista espetacular
para a lagoa Rodrigo de Freitas,
deveria ter sido o hotel Panorama.
Diz-se que até dinheiro da rainha
da Inglaterra entrou no investimento. Mas, abandonado na fase
de acabamento, o prédio ficou
largado até 1983, quando o governador Leonel Brizola desapropriou-o para construir um Ciep
(Centro Integrado de Educação
Pública), escola em período integral, jóia da coroa do seu governo.
Como o prédio fosse muito
grande, mesmo com os 800 alunos do Ciep, sobrou espaço. Resultado: ali se instalou uma espécie de onglândia carioca -tem a
sede do Criança Esperança, organização não-governamental da
TV Globo e do Unicef, tem a Biblioteca do Futuro, tem o AfroReggae e muito mais -um total
de 20. Cada ONG levando equipamentos e dinheiro para a comunidade, e produziu-se um território
de gente pobre com recurso de
condomínio rico.
Lá se encontram piscina, teatro,
anfiteatro, cursos de circo, aulas
de música, teatro e cenografia, oficinas de TV, cursos de edição, cameraman e cenografia para televisão. Também tem um centro de
internet, com aulas de informática à disposição da comunidade,
biblioteca, gibiteca.
Foi esse local que o bonde de 21
"playboys", a bordo de três vans
climatizadas e com película escura no vidro, invadiu na sexta-feira
retrasada. Acostumados a celebridades subindo e descendo (Xuxa,
Didi Mocó e Gilberto Gil já estiveram lá), os moradores da favela
nem ligaram para os microônibus
engatados em 1ª, escalando a ladeira íngreme de ruas estreitas do
morro do Cantagalo (aliás, debruçado sobre o bairro de Ipanema).
Levados ao auditório construído pelo AfroReggae ao custo de
R$ 400 mil, os visitantes assistiram a meninos favelados dançando, cantando, tocando, fazendo
acrobacias de circo (um dos instrutores, Bebel, um rapaz fortíssimo, chegou a atuar no renomado
Cirque du Soleil).
Nos pés, na cabeça e na roupa,
de muitos deles, uma Niketown
(megaloja da marca, como as
existentes em cidades como Nova
York ou Los Angeles). Era Air
Max Breathe 3, Air Zoom Vapor
3; Huarache 2k5 iD Premium; todos os modelos Shox -nomes de
tênis que os meninos da favela citam com intimidade.
Os visitantes notaram a profusão de tênis lindos, novíssimos e
custando até R$ 700 nos pés dos
favelados que também tinham
"bombetas" (bonés) e camisas
Nike. Enquanto isso, o diretor do
Comitê de Jovens Empreendedores da Fiesp, Ronaldo Koloszuk,
tinha um mero All Star de R$ 54
nos pés. A humildade paulista só
foi quebrada por um tênis Prada
branco velhinho, nos pés de um
jovem incorporador imobiliário.
Os paulistas começaram a se
preparar para visitar as favelas cariocas há 40 dias, mais ou menos
na época em que o rapper MV Bill
divulgou, pelo "Fantástico", o documentário "Falcão - Meninos do
Tráfico", em que se mostravam
garotos-soldados em ação.
Entre os jovens que visitaram os
morros e favelas, poucos ousaram
confessar às mães a intenção de
fazer a aventura. O empresário de
ensino Sylvio Araujo Gomide, 27,
membro da Comissão de Responsabilidade Social da Fiesp e do
CJE, por exemplo, contou apenas
que ia ao Rio conhecer os projetos
do AfroReggae. Só na volta disse
que tinha subido em áreas controladas por traficantes armados
de fuzis. Assustou a mãe.
"Eu sou a mosca que pousou na
sua sopa", cantou o vocalista negro da banda AfroReggae, Anderson de Sá, o olhar fixo sobre os
"jovens empreendedores da
Fiesp", e a voz distorcida por um
modulador, como os utilizados
em reportagens policiais na TV.
COMPLEXO DO ALEMÃO
Todos embarcados nas vans,
agora o destino é o complexo do
Alemão, conjunto de 11 favelas na
zona norte, 280 mil moradores,
local onde o jornalista Tim Lopes
foi assassinado, em junho de
2002. Eram 23h40 quando o bonde da Fiesp topou com o primeiro
bloqueio policial. "Bloqueio? Isso
aí a gente chama de "blitz do real".
Passou por ela, você tem de morrer com uma grana", explicou um
morador. Até entrar na favela, foram seis blitze. Polícia demais,
com fuzis M-16 em punho. Mas,
no complexo, polícia não entra
(se quiser muito, invade).
O acesso às ruas fechadas por
trilhos de trem espetados no chão
é difícil. As vans agora têm de
acender as luzes da cabine, para
que se veja quem vai dentro -se
o veículo que chega é "amigo", tira-se o trilho para dar passagem.
Meninos risonhos fazem gestos
estranhos com os dedos da mão
direita. Parece um "v" da vitória
que cai de lado e volta a ficar de
pé. Alguns paulistas retribuem o
que parece ser um cumprimento
e também fazem o "v" com os dedos. Até que um cicerone esclarece: "Eles estão "escrevendo" CV,
CV, CV, CV, de Comando Vermelho". Ah, bom. Dedos de branquelas visitantes encolhem-se.
Amsterdã, Zurique, posto 9
(Ipanema), onde se viu ou se vê o
consumo aberto de drogas, não
são páreo para o complexo. Os
paulistas descem das vans. Um
deles vê uma fila bem organizada
e, paulista que é, entra nela, imaginando ser a fila para entrar no
baile funk que todos sabiam ser o
destino do passeio.
Logo, nota que entrara na fila de
uma barraca de cocaína, onde garotos esticavam caprichosamente
carreiras de pó, para consumo de
narizes vorazes. "Proibido fotografar", avisa o produtor JB, do
AfroReggae, ele mesmo ex-traficante, vinculado ao CV.
A passeatinha de paulistas vai
andando pela rua principal e
trombando com dezenas de favelados que despejam -sem economizar- cocaína em cima de
folhas de papel, depois enroladas
como canudos que serão vertidos
diretamente nas narinas dos
usuários. Droga demais.
O cigarro de maconha normal,
lá, não pode ser apelidado de "fininho". Com diâmetro de 1,5 cm e
comprimento de 10 cm, a brasa
grande brilhando na escuridão,
parece um charuto. Não se vêem
meninas fumando ou cheirando
-mesmo as chamadas "cachorras", as que se contorcem na dança erótica do funk.
Nas caixas do baile, o bate-estacas marca o ritmo de uma música
cujo refrão é "Eu vou f... você em
pé. Eu vou, vou f... você em pé". O
telão mostra cenas de terremoto,
tsunami, perseguições policiais,
acidentes de carro, nocautes de
lutas vale-tudo -gente sofrendo.
Quando a passeatinha alcançou
a quadra do baile funk, 5.000 pessoas dançando, teve de abrir espaço para um automóvel Corsa prateado, vidros abertos, canos de oito fuzis à mostra, movendo-se vagarosamente. O Corsinha vai. O
Corsinha vem. Vai de novo. Vem
mais uma vez. Os traficantes queriam ser vistos. Os paulistas são
levados para um "camarote vip".
Logo na entrada, uma placa adverte: "É proibido consumir drogas no camarote". Tudo de graça,
tem uísque Red Label, Red Bull,
cerveja, mesa farta de frios, empadinha, coxinha, croquete, bolinho
de queijo. "Eu que preparei esse
bufê, para homenagear os visitantes de São Paulo", avisa Rair Menezes, 36, negro forte, dois metros
de altura, bata vermelha, chapinha no cabelo e sombra nos olhos.
Ninguém paga para entrar em
baile funk. Nem precisa. O dinheiro circula fora, nas muitas barraquinhas que vendem de tudo
-de CDs de música a pó. O baile
é ferramenta de marketing. Serve
para juntar os consumidores.
Um dos organizadores do baile,
Rair é respeitado no complexo. A
dona de uma barraca de cerveja
lembra-se dele, desarmado, desancando o valentão que tentou
entrar no baile com um fuzil: "Sai
daqui, moleque, eu falei que não
queria ninguém armado aqui".
Na quadra, MC Playboy, 40, cinco
filhos, ganhador do DVD de Ouro
da Furacão 2000. Dois celulares
na cintura, Playboy tem no pescoço um cordão de ouro com um
pingente de 7 cm em forma de cifrão -ah, é cravejado de brilhantes. Na orelha, um brinco também
de brilhantes com uma miniescultura do jogador norte-americano de basquete Michael Jordan.
E tem o infalível tênis Nike.
JB, que acompanha Playboy, diz
que o amigo é exemplo na comunidade. "Ele anda assim para
mostrar que tem saída. Que não
precisa entrar para o tráfico para
ter direito a um tênis bacana."
MC Playboy é divulgador do
trabalho do AfroReggae no complexo do Alemão, onde já funcionam oficinas de percussão, teatro,
música e dança. "Eles conseguiram o respeito até do traficante.
Eu já vi chefão daqui dizendo que
preferia que o filho seguisse o
AfroReggae a entrar no crime",
diz Playboy. Agora, o DJ anuncia:
"A putaria venenosa. Êêêê, ela é
venenosa". Os jovens paulistas
saem do baile às 4h14.
No dia seguinte, sábado, às 11h,
as vans passam pelos hotéis Copacabana Palace, Méridien e Everest
recolhendo os aventureiros para
conduzi-los a outro passeio. Preço mínimo só pela hospedagem:
R$ 250 por dia, para ficar em
quarto duplo, pagos pelos jovens.
PARADA DE LUCAS
Comunidade com 8.000 habitantes, Parada de Lucas é controlada pelo Terceiro Comando Puro. Ali, o AfroReggae mantém oficinas de informática (387 alunos),
violino (12), capoeira (60), história em quadrinhos (30), capoeira
(60), teatro (20) e webdesign (10),
além de alfabetização de adultos.
Quando os pequenos violinistas, sob a batuta da professora negra Frida Basilio Barros, 25, começam a tirar a melodia de "Brilha, brilha estrelinha", os olhos de
três visitantes lacrimejam.
O AfroReggae tem tecnologia
para receber extrafavelados. Há
um mês, um passeio semelhante
foi feito por 200 filantropos nipônicos, que chegaram ao Rio de Janeiro em um navio especialmente
fretado para "tours" sociais.
VIGÁRIO GERAL
O próximo passo foi a visita a
Vigário Geral, favela onde aconteceu o assassinato de 21 pessoas,
em 1993, conhecido como chacina de Vigário Geral. A comunidade, controlada pelo Comando
Vermelho, também é famosa por
manter a guerra urbana mais antiga da cidade, contra a vizinha
Parada de Lucas.
O pedreiro Antonio Fernando
da Silva convida os paulistas a visitar sua casa, Playstation 2 na sala
e três televisores de 29 polegadas.
Convite aceito, ele anuncia para a
mulher: "Selma, olha, os americanos vieram visitar a gente". Referia-se aos meninos da Fiesp.
As ruas de Vigário Geral foram
recentemente concretadas pelo
programa Favela-Bairro, da prefeitura. "Parece até cenário de novela", afirma Mariana Brunini, 27,
do Comitê de Responsabilidade
Social da Fiesp, que conheceu favelas bem mais "selvagens" na Índia e em São Paulo, onde trabalhou com ONGs.
De repente vem a ordem: "Nada
de fotos". O grupo chegou à boca,
cheiro forte de fumo. Bem no
meio dela, o AfroReggae quer
construir um centro cultural que
funcione sem parar. "A boca funciona 24 horas, então temos de
funcionar 24 horas também, se
quisermos criar um "point" alternativo ao dos traficantes", diz José
Junior. Custará R$ 3 milhões.
O passeio termina com um autêntico programa de favelado: almoço na laje que cobre a casa do
vocalista do AfroReggae, Anderson de Sá. Refrigerante, arroz, feijão, frango, peixe, maionese, farofa, muito bacon. A juventude
dourada paulista se refestela e a
paz -pelo menos naquela hora- reina entre ricos e pobres.
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