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MOACYR SCLIAR
Mordomias carcerárias
A prisão era só para transgressores? Pois bem, os seus turistas cometeriam alguma transgressão
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Califórnia oferece prisão "cinco estrelas" para quem pode pagar US$ 82 ao dia.
Um condenado sabe que seu débito para
com a sociedade deve muitas vezes ser
pago na cadeia. Mas uma parcela de californianos dispostos a complementar sua
dívida com dinheiro vivo está descobrindo que a pena é quase suportável.
Para delinqüentes cujos crimes são relativamente menores e cujas contas bancárias permaneçam cheias, cerca de uma dúzia de cadeias espalhadas pela Califórnia, nos EUA, oferecem "upgrades". São
alternativas mais limpas e mais tranqüilas às celas normais das cadeias públicas.
Por algo entre US$ 75 e US$ 127 por dia,
condenados conseguem uma pequena
cela sem barras a uma confortável distância de presos violentos. Em alguns casos, estão autorizados a levar um laptop.
Muitos dos detentos têm permissão para
trabalhar fora da cadeia e voltam para
dormir.
Um cliente típico é um homem na casa
dos 30 anos condenado a sentenças de
um ou dois meses. Mas existem também
hóspedes de uma única noite e gente que
passa até um ano.
Críticos dessas prisões afirmam que elas
fazem parte de um sistema que cria injustiças ao oferecer vantagens a quem
possa pagar.
Já os defensores dizem que os apenados
pagantes, que às vezes deixam milhares
de dólares, ajudam a economizar o dinheiro do contribuinte.
Folha de S.Paulo
QUANDO ELE leu a notícia sobre a prisão "cinco estrelas"
na Califórnia, ficou alvoroçado. Dono de uma pequena, e não
muito bem sucedida, agência de viagens, pressentia ali um verdadeiro
filão, para o qual logo bolou um nome: turismo prisional.
A idéia era levar grupos de turistas
amantes de aventura para se hospedarem nas prisões californianas,
com direito às mordomias permitidas pela lei. Com o original empreendimento, sem dúvida, se projetaria no ramo.
Dois dias depois viajou à Califórnia. Procurou o administrador de
uma das prisões "cinco estrelas" e
propôs o negócio. O administrador,
homem amável, gentil, recebeu-o
bem, ouviu com interesse, mas disse
que infelizmente havia um grande
problema: a prisão "cinco estrelas"
destinava-se a transgressores, e somente a transgressores. Turistas
normais estavam automaticamente
excluídos dessa categoria e não poderiam usar as celas, nem mesmo
para conhecê-las.
Ele ficou muito frustrado. Mas,
homem persistente, decidiu que não
abandonaria assim o seu projeto. A
prisão era só para transgressores?
Pois bem, os seus turistas cometeriam alguma transgressão. Uma pequena transgressão que resultasse
em, por exemplo, uma semana de
prisão "cinco estrelas".
Resolveu fazer um teste para ver
como funcionaria a coisa. Naquela
mesma tarde entrou numa pequena
agência bancária, gritando que era
um assalto. Não era assalto coisa nenhuma, e nem armado ele estava,
mas conseguiu o que queria: foi preso. E aí ocorreu o inesperado: ao invés da sentença leve que tinha previsto, foi condenado a oito meses de
prisão ("cinco estrelas", claro). Gastou muito mais do que imaginara.
Além das diárias, as despesas extras
em telefonemas e em alimentação
(gostava de comer bem) não foram
pequenas. Para liquidar a astronômica conta, foi obrigado a pedir dinheiro emprestado.
É uma dívida que não tem como
pagar. De modo que só lhe resta uma
alternativa: assaltar um banco. É o
que fará. E, se for preso, recusará,
com toda a convicção, a prisão "cinco estrelas".
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas na Folha de S.Paulo.
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