São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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DANUZA LEÃO

Refazendo a vida

Aí, você se programa: neste fim de semana, não vai combinar nada, para passar a limpo a agenda de telefones. Há uns cinco anos não faz isso, e na gaveta está também a do seu último trabalho -aliás, imensa.
Chega o sábado, uma passada de olhos rápida nos jornais, e vamos ao trabalho, que, tudo indica, vai ser uma delícia. Não existe nada melhor do que uma agenda com todas as páginas em branco, novinha em folha. É como começar a vida de novo; e, igualzinho a começar a vida de novo, uma delícia e um tormento.
A quase cada nome, é preciso fazer uma opção. Mais: é preciso rever as relações com cada pessoa, uma por uma, e pensar se vale a pena colocar aquele nome na agenda nova. Um problema; aliás, vários problemas.
Aí, começa uma leve depressão. Aquela pessoa com quem você passava mais tempo do que com os amigos da vida inteira -oito ou dez horas por dia-, com quem abriu o coração tantas vezes, com quem acontecia de sair do trabalho para tomar um uísque e falar mal do patrão e da empresa. A ela você contou intimidades, com ela você desabafou, riu e chorou, compartilhou alegrias e tristezas. Gostava dela de verdade, mas -você na época não sabia- entre vocês só havia uma coisa em comum: o trabalho. Se se cruzarem hoje em algum lugar, vai ser um prazer, mas sinceramente: você vai ligar para ela algum dia mais na vida?
Responder a essa pergunta é um exercício de autoconhecimento. Será que você não tem sentimentos, não tem nenhum caráter e, de tudo que passaram juntos -e que não foi pouco-, não sobrou nada? Sobrou uma amizade, sim, só que ela agora faz parte do passado e, nessa nova etapa de vida, as lembranças -as poucas que ainda existem- vão ficar no coração. Na agenda, não. Aliás, já reparou que ela nunca mais te telefonou?
Mas tem pior: aquele homem por quem você um dia inventou que estava apaixonada. Vivia tirando o celular da bolsa para ver se não tinha recado, chegava em casa esbaforida para ver se, talvez, quem sabe, na secretária eletrônica, e alugou bem o ouvido daquela amiga perguntando o que ela achava.
Tudo acabou, claro, e, quando, um dia, num aeroporto, você viu a figura de longe, enfiou a cara no jornal para não ter que falar. Já pensou ter de tomar um café com ele? E se fossem pegar o mesmo avião? E o assunto durante a viagem? Não, esse também não vai para a agenda nova.
A cada nome passa um pequeno filme na cabeça e, na letra L, você já relembrou metade de sua vida. Algumas coisas com prazer -e até essas doem, por já terem passado- e outras que preferia ter esquecido. Aquela empregada que trabalhou para você durante anos e que viu todas as coisas -as boas e as péssimas- e para quem você nunca mais telefonou. E o remorso? Tem pior que o remorso?
Vai telefonar para ela, de quem continua gostando, mas preparada para sofrer.
A memória protege e nos faz lembrar a pessoa exatamente como da última vez em que a vimos. Não passa pela cabeça de ninguém que 20 anos se passaram e que a vida deixa suas marcas no rosto e na alma. Quando você vê as marcas no rosto dela, sofre; pensa que está sofrendo por ela, mas na verdade está sofrendo por você mesma. Afinal, os mesmos 20 anos passaram para você também.
A vida é cruel, e a única defesa às vezes é endurecer e sem nenhuma ternura.
Refazer uma agenda é uma queima de arquivo, e ninguém passa por isso impunemente.
Porque dói.

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danuza.leao@uol.com.br


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