São Paulo, terça-feira, 07 de agosto de 2001

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MARILENE FELINTO

Oferta: papelote de droga por bônus do apagão

Rico não sente dor, nem economiza energia elétrica. É o que o povo pensa, e é o que dizem as contas do racionamento de luz até agora. Certa dose de antipatia, certo tom de "bem feito!" marcaram a opinião pública quanto ao acidente de helicóptero sofrido pelo empresário João Paulo Diniz no litoral norte de São Paulo.
Tudo porque o sujeito é rico -afinal, quem vai simpatizar com dono de supermercado num país como este?-, aquele tipo de rico arrogante, obcecado por frivolidades, a "malhação" do corpo, mulheres modelos, o luxo de carros e helicópteros. Tudo isso depõe contra, a população refutou com desdém a tragédia, numa espécie de catarse: bem feito! Quem mandou querer ser poderoso, desafiar a natureza?
Mas que rico não economiza energia elétrica, isso, sim, é verdade. Balanço destes dois meses de racionamento mostra que apenas metade dos consumidores que usam acima de 500 kwh/mês (os ricos) atingiram a meta de 20% de economia. Já entre os consumidores de até 100 kwh por mês (os pobres), 90% pouparam o dobro disso, ou seja, fizeram uma economia de 40%.
Economizaram não apenas por estarem acostumados a viver à míngua, por subserviência aos ditames da autoridade ou porque não poderiam pagar as multas -fizeram o sacrifício também porque estavam de olho no tal bônus, na promessa de que a cada R$ 1 economizado na conta, o consumidor ganharia bônus de R$ 2. Para os 53 milhões de pobres brasileiros, essa contabilidade faz a diferença.
Pois é exatamente o bônus que o governo FHC parece estar com dificuldade em pagar. Não seria um escândalo enganar o povo desse jeito? O chamado "ministério do apagão" alega não ter arrecadado dinheiro suficiente com as multas àqueles que não economizaram (calcularam que mais gente seria multada). Dessas multas viria o dinheiro do bônus. É assim imoral o grau de inoperância a que chega o governo tucano. Bastava isso para derrubá-lo se vivêssemos num país decente.
É por essas e outras que a favela se rebela, ignorando a autoridade constituída, criando suas próprias leis. A favela é um município dentro do município, faz a feira que lhe convém, toma medidas concretas e pragmáticas: "Maconha de R$ 2!" "Promoção no pó de R$ 5!", "Vem cheirar o pó bom da Grota", gritavam os mercadores da droga na sexta-feira, alto e bom som, à luz do dia, na favela da Grota (RJ), como mostrou o "Jornal Nacional", da Globo.
Ora, o papelote de cocaína tem mais moral do que o bônus do apagão. Pelo menos não é mentira. É a verdade nua. A feira de drogas é uma demonstração de poder local, é a sociedade decidindo o seu destino -ainda que sob a mira dos fuzis e pistolas que os soldados do tráfico portavam em plena rua-, construindo a sua transformação, distribuindo a renda que o poder constituído insiste em concentrar na mão de uma minoria.
No fundo, o povo sabia que o bônus era um engodo, como sabe que a Eletropaulo não vai cortar a luz das mansões de milionários como os Diniz.
É por essas e outras que, nesse cenário de violência e caos da favela, por mais horrorosa que seja a ilegalidade da feira de drogas, ela ainda é tida como um protesto social "valorizado em sua dimensão transgressora" (para usar palavras de Maria Alice de Carvalho em "Violência no Rio de Janeiro: uma Reflexão Política") da mesma forma que o bandido ainda é visto como um herói pré-político, menos danoso que os tucanos engravatados de Brasília.

E-mail - mfelinto@uol.com.br



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