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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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GILBERTO DIMENSTEIN

Se você acha que o MST incomoda, prepare-se

O protesto de estudantes secundaristas que paralisou, na semana passada, a cidade de Salvador e deixou desnorteados os governantes indica a existência de um movimento muito maior do que se imagina.
Ainda embrionário, esse movimento não ficará restrito a Salvador e, menos ainda, a um protesto contra o aumento das tarifas de ônibus. É apenas o começo da inevitável mudança da agenda brasileira de insatisfações sociais.
Os estudantes ensaiam os primeiros passos para sair da pasmaceira e assumir o papel de protagonistas em uma ofensiva contra as deficiências da educação pública, as dificuldades de entrar nas melhores faculdades e a escassez de empregos.
Sem uma liderança, eles agiram motivados por algo concreto, livres de contaminação partidária e ideológica, mostrando o que os estudantes, inconformados, são capazes de fazer para melhorar suas condições de vida.
 

A agenda dos sem-terra é velha, anacrônica, parte de um Brasil agrário. Não são poucos os estudiosos defensores da idéia de que assentar famílias é uma atitude humanitária, mas, ante a complexidade da estrutura produtiva, com baixo efeito econômico.
No Brasil contemporâneo, jovens pobres, na luta pelo emprego, transformam as noites das metrópoles: trabalham de dia para estudar durante a noite. Enquanto esse Brasil parava as ruas de Salvador, um Brasil anacrônico, no Congresso, mais uma vez subia impostos que ameaçam parar o país.
Na semana passada, mais dados revelaram o Brasil contemporâneo. O Censo Escolar, preparado pelo MEC, mostrou que, neste ano, o número de matrículas do ensino médio cresceu 5%. Aliás, nada denuncia de modo tão flagrante as demandas do que o crescimento de 12% das matrículas em cursos para jovens e adultos, conhecidos antigamente como supletivos.
Prossegue, assim, uma das tendências mais relevantes da paisagem social brasileira: atualmente, cerca de 8 milhões de brasileiros estão no ensino médio. É gente com mais informação e mais exigente. Muitas dessas pessoas conseguem entrar nas faculdades privadas, poucas nas públicas.
 

Por causa da mudança dessa paisagem, é um óbvio erro acabar com o ranking de cursos universitários, como foi proposto pela comissão que, na semana passada, sugeriu alteração do provão.
Quem não se deixa levar pelas artimanhas partidárias e corporativas sabe que acabar com o ranking de notas prejudica, em especial, aqueles estudantes mais pobres que chegaram à faculdade privada.
Quem mais ataca o teste são as universidades públicas -as melhores- e a União Nacional dos Estudantes (UNE), ícones do corporativismo do Brasil velho, no qual o Estado não pára de sugar de quem trabalha.
Mas quem, de fato, sofre com o ranking são as faculdades privadas medíocres, que, desde a implantação do provão, perdem alunos, alertados para a arapuca.
Curioso movimento: professores das universidades onde estão os mais ricos, com as bênçãos da UNE, lideram um processo para prejudicar os mais pobres. O motivo disso não é, claro, maldade, mas apenas falta de percepção do Brasil contemporâneo.
 

Os jovens de Salvador mostraram uma articulação estudantil que há décadas não se via e revelaram o poder dessa baixa classe média, no limite da pobreza, mas com maior escolaridade. Esse segmento produz a explosiva química de alta expectativa -aposta no ensino com mais consciência dos direitos- com poucas possibilidades num país de educação elitizada. Além disso, no final, depois de tanto esforço, esses jovens esbarram na falta de vagas no mercado de trabalho.
Se você acha que o MST, do Brasil velho, distante das metrópoles, já faz barulho, espere para ver o que esses jovens, frustrados e escolarizados, vão fazer quando reproduzirem, em escala nacional, o efeito Salvador.
É só uma questão de tempo.
 

PS - Por falar em educação e Brasil contemporâneo: realizada pelo Sistema de Ensino Anglo, uma pesquisa preliminar com 11 mil entrevistas, em centenas de cidades, revela o maior temor dos pais das classes média e alta. Indagados sobre os fatores que os fariam tirar seus filhos de uma escola, quase 70% apontaram as drogas e, em um bem distante segundo lugar (44%), o valor das mensalidades. Dos problemas que envolvem a saúde da família, 72% apontaram o temor do uso de drogas. Todos pagam mensalidade, e a maioria deles diz que, para não deixar que acabem numa escola pública, vale "qualquer sacrifício". Trechos da pesquisa estão no www.aprendiz.org.br.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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