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OPINIÃO
Adulteração cultural
SAMIR MESERANI
Nem remotamente o brasileiro é
um povo que se destaca pelo hábito da leitura. Mas não se pode negar que gaste com livros.
Todos os anos, o governo gasta
em média R$ 200 milhões do dinheiro público em compra e distribuição de livros didáticos, fazendo a alegria de um pequeno
grupo de editoras, correspondente
a menos de 10% das empresas editoriais do país.
Durante a compra, o Ministério
da Educação e os editores encenam uma briga antiga. O MEC divulga na imprensa que o livro didático -com poucas exceções- é
uma vergonha e que teve de rejeitar metade das obras oferecidas,
que apresentavam erros conceituais grosseiros, preconceitos e
deslizes ideológicos.
Os editores protestam contra as
avaliações do MEC, duvidando da
competência dos seus avaliadores,
de seus critérios e das regras do jogo. Cautelosamente.
Até porque, na verdade, as avaliações governamentais não assustam editor algum -são apenas
correções próprias de um bom revisor e não de um crítico rigoroso.
Detalhes fáceis de ser reparados na
edição seguinte, feita para corrigir
e requentar as obras.
Com os restritos itens adotados
pelo Ministério da Educação em
suas avaliações, as listas telefônicas deveriam ser recomendadas e
adotadas na escola, pois não trazem erros conceituais, preconceitos ou deslizes ideológicos. Mulheres e homens, negros e brancos, esquerda e direita, crentes de
todas as religiões e os de todas descrentes nelas aparecem. Igualmente, sem privilégios ou erros
grosseiros. Nem por isso as listas
são um livro didático.
Os itens do MEC corrigem falhas, mas não analisam nem julgam a natureza específica do didático. Com ou sem essas avaliações
mínimas necessárias -mas muito
aquém do suficiente-, compra-se gato por lebre.
O livro didático constituiu-se,
em sua maior parte, de "traduções" de textos originais das ciências e das artes.
Trata-se da difícil tradução de
repertórios culturais, de uma divulgação que, democraticamente,
distribui conhecimentos e os torna acessíveis a iniciantes.
A divulgação sempre corre o
grande risco de se trair em vulgarização, de cair em "diluição", para usar a metáfora feliz do poeta
norte-americano Ezra Pound. Diluição aguada, que os jornalistas
chamam de pasteurização.
Como muitos "autores" dos didáticos não têm o hábito de ir às
fontes e de pesquisar seus assuntos, melhor será chamá-los de copistas, que, de cópia em cópia de
outros didáticos, diluem até a própria diluição, misturam mais água
no leite do que o suportável. Adulteram a cultura.
Copiar, sabe-se, custa menos
que criar. E as editoras dos didáticos são duplamente copiosas
-tanto na reprodução de obras já
editadas como na abundância das
tiragens.
Só para ter uma idéia da abundância, de cada 100 livros produzidos no país, 60, ou mais, são didáticos. Os restantes 40 exemplares
(ou menos) se dividem entre obras
de literatura, religião, ciências e
demais assuntos.
Os editores costumam sussurrar
(mas nunca em público) que fazem esse xarope escolar tão diluído porque é dele que o professor
adotante gosta. O perfil de nosso
professor de primeiro e segundo
graus, a julgar por esse gosto, está
no limite da idiotia. E, se não está,
acaba ficando com o uso de tais
livros de adulteração cultural, de
confecção brega e de baixa extração educacional.
A saída, então, seria preparar o
professor para ser diretamente um
bom crítico do livro que usa,
emancipando-o da massificação
idiotizante e da tutela de avaliações precárias e duvidosas. Não é
um caminho suave. Mas leva à solução. Por que o MEC não faz isso?
Pois é, é o que pergunto há muitos
anos.
Samir Meserani, 62, bacharel em direito, mestre em comunicação e semiótica e doutor em
educação, é professor da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. É autor de "O Intertexto Escolar" (Editora Cortez, 1995), entre
outras obras
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