São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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DANUZA LEÃO

Lembrando

Há quanto tempo você não tem um amor eterno? Lembra, pelo menos, da freqüência com que se apaixonava? Ah, quanta perda de tempo; ah, como era bom.
Bastava olhar para um homem razoavelmente charmoso para o coração bater descompassadamente. Independia de ele ser inteligente, de terem afinidades ou votado no mesmo candidato. Era preciso passar todos os minutos do dia -e todos os dias do ano- amando loucamente e falando com as amigas, é claro; afinal, sobre o que conversam duas mulheres, seja na praia, nos corredores do escritório ou trancadas no quarto? Sobre namorados, é evidente. Numa determinada faixa de idade (mental), isto é, dos dez aos cem, não existe outro assunto na cabeça de uma mulher.
Elas ignoram as guerras, as crises, a inflação; e uma mulher apaixonada por acaso lê jornal? Até lê, mas só o horóscopo -o dela e o dele. As mais cultas chegam a se interessar pelos ascendentes (o dela e o dele), e atire a primeira pedra aquela que nunca achou que uma letra de Chico era a ca-ra de seu romance.
Mas o perigo ronda, e basta que o homem pelo qual a mulher está apaixonada faça um só gesto para ela largar tudo e ir atrás dele; pensando bem, e com o distanciamento histórico, ainda bem que poucos fizeram o tal gesto.
Começa a pensar e lembra de uma vez em que virou a vida pelo avesso, trocou a praia pela montanha, a carne pelos legumes e tratava qualquer febre e qualquer dor com produtos naturais, ai, ai.
Como sempre foi radical, aboliu toda e qualquer vaidade: no lugar de fazer luzes no cabelo, passou a usar shampoo de chá de camomila, aboliu o tranqüilizante e adotou a erva-cidreira, e nessa fase valia tudo, desde que não desse nenhum prazer. Passou anos sem usar qualquer maquiagem e sem se preocupar com a forma física, só com a saúde. E para que ter cintura, se só usava camisolão?
Por instinto de sobrevivência evitou, sem que ele soubesse, qualquer coisa parecida com uma gravidez, e sempre achou, secretamente, que uma cesariana com uma boa anestesia é mais natural do que um parto de cócoras. Um belo dia aconteceu o que sempre esteve escrito nas estrelas: aquela vontade irresistível de usar sandálias de salto alto e um vestido colado ao corpo.
A partir do momento em que se deu o direito de raciocinar, tudo fluiu. Ele, como não comia carne vermelha, era uma pessoa razoável, serena e compreensiva, por isso não houve derramamento de sangue na hora do adeus.
Ela pegou o ônibus, chegou em casa -também por instinto de sobrevivência, conservou o apartamento- e foi direto para o telefone.
Ligou para as amigas, que logo sugeriram jantar num lugar bem animado. Quase aceitou, mas lembrou de uma regra -sua- que jamais infringiu: depois das 6h da tarde, é melhor sair com um homem idiota do que com uma mulher inteligente. Marcaram um almoço, tarde, para sábado. Com bastante tempo para se produzir, a primeira coisa que fez foi ir a um cabeleireiro e pintar as unhas dos pés de vermelho cereja.
O almoço durou horas, e quando acordou na manhã seguinte sem lembrar de nada, morta de sede, encontrou um bilhete na porta da geladeira dizendo "Gata, você é demais, te ligo".
Voltou para a cama pensando na vida: afinal, quando é que foi mais louca? Quando largou tudo em busca de uma vida nova que não tinha nada a ver com ela, ou na noite anterior?
Sinceramente, sinceramente mesmo? Não sabe, mas talvez tenha chegado a hora de amadurecer, de saber quem realmente é, de tomar juízo, mesmo correndo o risco de nunca mais ser chamada de gata.
Mas será que vale?


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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