São Paulo, sábado, 08 de março de 2008

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Elisa, 90, troca as novelas por curso de direito em BH

Aposentada desde 1989, pedagoga planeja fazer estágio no escritório do filho e do neto e aprender a utilizar a internet

Elisa não fez preparação específica para o vestibular; para passar, ela diz que usou conhecimento adquirido em livros, viagens e conversas

CLÁUDIA COLLUCCI
ENVIADA ESPECIAL A BELO HORIZONTE

Sentada na primeira fila da sala 137, Elisa não tira os olhos da professora de português. O tema da aula é o uso indevido dos cartões corporativos no governo federal, e os alunos farão um trabalho em conjunto. São 19h30 da última quarta-feira, o ano letivo mal começou e a estudante já se preocupa com as provas do final do semestre. "Não posso fazer feio", diz ela.
Há três semanas, a pedagoga mineira Elisa de Castro Tito, de 90 anos, trocou suas noites regadas a novelas pelas aulas do curso de direito da Faculdade Arnaldo Janssen, no centro de Belo Horizonte (MG). "Cansei de ver violência e sexo na TV. Quero usar meu tempo para coisas mais úteis", afirma a caloura, que tem nove filhos, 22 netos e três bisnetos.
Aposentada há quase 20 anos e sem preparação prévia para o vestibular ("usei o conhecimento que adquiri na minha vida, nas leituras, nas minhas viagens, nas conversas com minha família"), Elisa passou no concurso no final do ano e, desde então, virou ícone na instituição de ensino (que durante o dia é um colégio), por onde já passaram nomes como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Ivo Pitanguy.
"Trabalho duro o dia todo, chego aqui bem cansada, mas quando olho para a dona Elisa, penso comigo: "não posso desanimar. Se ela, que tem o dobro da minha idade, está aqui disposta a aprender, eu também posso", diz a colega de classe Claudia Nery, 45.
A admiração se estende à ala masculina. O caçula da sala, Lucas Mayrink, 19, piercing na orelha e rabo-de-cavalo no cabelo, afirma que aprende muito com a idosa. "Ela é muito culta e simpática com todo mundo."
A futura advogada não se furta ao debate. Para todas as perguntas, tem uma opinião na ponta da língua. Eleições presidenciais nos EUA? "Acho o [Barack] Obama muito jovem e a Hillary, teleguiada pelo Bill Clinton. Mas também não gosto muito do candidato do Bush [referindo-se ao republicano John McCain]."
Uso dos cartões corporativos? "Uma pouca vergonha, um disparate que deveria ser punido. Gente, comprar mesa de bilhar é muita cara-de-pau, né?"
Pesquisas com célula-tronco embrionária? "Não tem fundamento cristão. Penso que deveriam priorizar as pesquisas com células-tronco adultas."

Pintura
Três horas antes do início da aula na quarta-feira, lá estava Elisa às voltas com a administração do apartamento onde mora com um filho viúvo e três netos. Orientou a empregada sobre o que fazer para o jantar, pediu café e mostrou a esta repórter o hobby que cultiva há 80 anos: a pintura.
As paredes da ampla sala de estar estão repletas com suas obras. Quadros, cerâmicas, finas porcelanas, todos levam a assinatura caprichada de Elisa.
A saúde também vai muito bem, obrigado. "Não tomo nenhum remédio de uso contínuo. Minha pressão é ótima, minhas taxas de colesterol e de glicemia, idem. Como de tudo, mas sem exagero. E gosto de vinho suave, de vez em quando."
E o segredo para ter essa vitalidade aos 90 anos? "Não vi o tempo passar. Não guardo raiva ou mágoa das pessoas. E também não passei por grandes sofrimentos na vida. Nunca perdi um filho, por exemplo."
Viúva há dez anos, Elisa conta que se surpreende com os procedimentos estéticos aos quais as mulheres de meia-idade se submetem hoje em dia. "Colocam botox, preenchimento, fio de ouro. Fica aquele rosto repuxado e o pescoço todo enrugado. É muito feio", opina, garantindo que nunca pensou em fazer nada parecido.
"Minha neta vive falando para eu passar cremes anti-rugas, mas acabo esquecendo. Também não ligo para comprar roupas. Tenho vestidos de 30 anos atrás que ainda estão na moda."
Desde que se aposentou, em 1989, Elisa investiu seu tempo e seu dinheiro em viagens pela Europa e pelo EUA, na companhia da irmã, dois anos mais nova. "Meu marido não gostava de viajar." A viagem ao Egito foi a que mais a marcou. "As pirâmides são fantásticas."
E os planos para o futuro, dona Elisa? "Se o juiz supremo não bater o martelo antes, vou ser estagiária no escritório de advocacia do meu filho e do meu neto. Tenho muita vivência e isso pode ajudar na condução dos casos. Também quero fazer um curso de informática e saber navegar na internet."


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