São Paulo, sábado, 08 de abril de 2006

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QUESTÃO DE PRIORIDADE

Lutadores de vale-tudo pintam as unhas para evitar roê-las e exibem tatuagens com mensagens religiosas

Atletas da porrada usam músculos e esmalte

Marlene Bergamo/Folha Imagem
O lutador Evangelista Cyborg (com as unhas pintadas) enfrenta Roberto Godoi em competição de vale-tudo no ginásio do Ibirapuera


DA REPORTAGEM LOCAL

Quando a equipe de avental branco perfilou-se grudada ao ringue, às 21h de anteontem, podia-se esperar pelo pior. Motorista de ambulância, técnicos em ortopedia e traumatologia, fisioterapeutas e médicos, ao todo oito profissionais de saúde ligados à área de desastres foram convocados para prestar socorro aos atletas da porrada que se apresentariam dali a pouco no 4º Showfight, realizado no ginásio do Ibirapuera (zona sul de SP).
Equipados com desfibrilador cardíaco, para a eventualidade de um colapso, tubos de oxigênio, gelo, prancha dura para remoção de algum destroço humano, os profissionais prepararam-se para o pior: uma fratura de coluna vertebral, particularmente na cervical (acidente como o que vitimou a "Menina de Ouro" do filme dirigido por Clint Eastwood, a que todos ali assistiram). "É nosso maior medo", disse o chefe da equipe médica, ortopedista José Carlos Garcia, ele mesmo um ex-boxeador.
Mas, como o evento era de durões de todos os tipos (na platéia estavam cerca de 8 mil pessoas, a esmagadora maioria de homens praticantes da "nobre arte do combate"), não havia lugar para o medo. Logo, anunciou-se a primeira luta da noite: entre a Bandida do Amor e a Mulher Samambaia, estrelas de revistas masculinas e de programas de TV. "A postos, colegas", ordenou o doutor Garcia, mirando os peitos em forma de balão da Bandida. "Há um risco sério de fratura de silicone", disse.
Enquanto a palhaçada sexy rolava no ringue, nos camarins, lutadores de verdade untavam seus corpos com vaselina, enrolavam faixas nas mãos, aqueciam-se e rezavam (de 14 guerreiros entrevistados pela Folha, todos declararam-se evangélicos).
São cristãos que querem ser sempre jogados na arena (o prêmio em dinheiro para o vencedor de cada luta eles não divulgam, é segredo contratual). O nome "Jesus" aparece tatuado no pescoço, no abdome, nas costas -o corpo é um manifesto.
As orações, os dedos apontados para o teto do ginásio (como se fosse para Deus), as persignações em série vêm acompanhados de estranhos sinais corporais, em se tratando de lutadores.
O bicampeão do Jungle Fight e campeão do Cage Rage e do Meca Fight, Evangelista Cyborg, apresenta-se com as unhas caprichosamente pintadas de preto. Muitos usam esmalte incolor.
Não é coisa de efeminado, não, apesar da insistência com que ecoa nas caixas de som o hino "We are the champions, my friends", do Queen, de Freddie Mercury, morto em decorrência de Aids em novembro de 1991.
"Quem rói unhas sabe a dor que é pegar uma azeitona com as pontas dos dedos expostas", explica um técnico. "Esses lutadores têm de agarrar, imobilizar, desestabilizar, derrubar com as mãos [também com os pés, é claro, mas é difícil roer as unhas dos pés]. Para evitar que eles roam as unhas, e suas mãos comecem a sangrar no meio do combate, a gente recomenda que pintem."
Evangelista Cyborg, também conhecido como Cyber, com seu "Só Deus pode me julgar" tatuado no pescoço, como se fosse um código de barras, as unhas negras, sempre elas, esmagou Roberto Godói. "É um corpo suando. É um corpo ofegante. É a sensação de vitória. Isso é showfight", disse Oscar Maroni Junior à platéia.
Pausa para um intervalo: entram três motocicletas Harley Davidson, motores roncando dentro do ginásio. À frente, o próprio Maroni. Na garupa, a sílfide Vivian M., ex-modelo. "A gente está junto há dois anos". Quando as motos estacionam, o casal, em pé, protagoniza um longo beijo de novela. Os marmanjos na platéia se impacientam: "Uuuuuuuuu."

Arena romana aqui
A idéia de investir nessa atualização das arenas romanas, Maroni teve há dois anos, quando foi assistir ao torneio asiático K-1. "Havia 40 mil pagantes, com o preço médio do ingresso em U$ 300. Eram U$ 12 milhões em uma única noite." Some-se a isso a venda do direito de transmissão do evento para 38 países.
O Pride, outro torneio asiático, reúne 70 mil pagantes, cada um desembolsando U$ 300 em média: "Dá U$ 21 milhões em uma só noite", recita Maroni. "Quando vi que, de cada dez lutadores desses torneios, seis eram brasileiros, pensei: por que não trazer esse show para o Brasil?"
Calcula-se que o Brasil tenha algo entre 200 mil e 300 mil praticantes de alguma modalidade da "nobre arte do combate." A pancadaria ganhou status de negócio sério quando a família Gracie começou a abrir suas academias. "O jiu-jítsu nos deu o fundamento da luta de solo", diz Antônio Fernandes de Oliveira, 32, paraibano e aluno da Gracie de São Paulo.
"Mas também tem a pobreza do brasileiro", diz ele. "Não é lutador quem quer, é quem precisa. É muita porrada o tempo todo. Só quem já sofreu muito é que agüenta."
Um clone da senadora Heloísa Helena, a tricampeã mundial de jiu-jítsu, Michelle Tavares, 27, chora quando conta que muitas vezes não podia treinar por falta de dinheiro para tomar o café da manhã. Casada com um funcionário da academia onde treina, ela está contente porque conseguiu um patrocínio, o primeiro de sua carreira. "Graças a Deus, agora tenho o patrocínio do almoço." Michelle venceu a campeã paranaense de muay thai Aderly Madonna na categoria vale-tudo.
Na luta mais esperada da noite, o lutador negro Eduardo Pamplona venceu Jorge Patino, conhecido por Macaco. "Eu dedico essa luta aos manos da vida difícil. E quero lembrar a todos: no jogo de roleta, na dúvida, aposta no preto." Tem a ver.
(LAURA CAPRIGLIONE)


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