São Paulo, sábado, 08 de julho de 2006

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Em Araraquara, cartas vetadas trazem notícias e juras de amor

Diretor do presídio desistiu de liberar a correspondência entre presos e familiares

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A ARARAQUARA (SP)

"Ismael, meu filho, em primeiro lugar, quero te dizer que, se possível fosse, eu ficaria em teu lugar, para que você pudesse se recuperar de tuas feridas aqui fora." As palavras foram escolhidas com capricho para a carta do pai Danilo de Queiroz Cardoso ao filho Ismael Francisco Queiroz Cardoso, 26, condenado a cinco anos e sete meses por roubo. Desde o dia 16 de junho, dia da rebelião que destruiu a penitenciária de Araraquara, Ismael é um dos mais de mil presos confinados em um setor de 600 metros quadrados do que já foi o Anexo de Detenção Provisória, construído para abrigar 160 presos. Ele é um dos que estão atrás de uma porta de aço lacrada a solda, sem chaves. A troca de correspondência entre familiares e presos, que está proibida desde a rebelião, ontem seria restabelecida. A promessa, feita pelo diretor da penitenciária, Roberto Medina, ao senador Eduardo Suplicy (PT), anteontem, animou os parentes dos presos, que compareceram à porta da cadeia para entregar suas cartas e, quem sabe, receber alguma notícia. Quando, às 16h, o saco já contava 153 envelopes, veio a notícia: o diretor voltara atrás -o correio continuava proibido. No saco, que acabou guardado atrás do balcão do bar em frente à penitenciária, o pai tranqüiliza Ismael: "Querido filho, tua mulher está bem, teu filho Danilo e tua pequena filha Aline Vitória, apenas com um mês de vida, estão sendo bem cuidados. Não se preocupe com eles. Teu pai está aqui...." O diretor da penitenciária não explicou o que motivou a mudança de idéia sobre o correio. A menina N., 9 anos, que visita o pai desde recém-nascida, pelo menos uma vez por semana, sempre acompanhada da mãe, faltou às aulas ontem, depois de avisar à diretora da escola que não podia deixar o pai sem carta dela no primeiro dia de correspondência. A diretora, única da escola, além de duas amiguinhas órfãs, a saber que o pai de N. é presidiário, concordou. Na frente da cadeia, ela escreveu: "Papai, eu preciso que você fique muito bem para nos ver novamente. Fique sabendo que eu gosto muito de você e por isso preciso que você sobreviva". Dentro de um coração, o nome dela e o do pai. Eni da Silva, doméstica, mãe de Tiago Felipe da Silva, condenado a três anos, contou para o filho: "Não estou mais trabalhando. Tive uma hemorragia e no mês de agosto, se tudo der certo, farei uma cirurgia para tirar o útero. Não se desespere, estou bem, tá? Sobre o serviço, a mãe já tava na hora de descansar. Agora é você, negão, que vai ter de ajudar teu pai, com teu esforço e trabalho. Perdoa-me em tudo onde nós erramos e não tente fugir, pelo amor de Deus. Beijos, Mãe". As mulheres que não tinham trazido as cartas prontas escreviam na hora, letras caprichadas, em folhas grandes de caderno. Só paravam quando alguém recebia ligação de celular de dentro da cadeia -aí, ligava-se o viva-voz e se ouvia: "Veio o pessoal do choque e pediram para todo mundo se afastar da porta, enquanto uma serra elétrica abria a chapa de aço. Então, tiraram mais ou menos uns 60, 70 presos doentes. Tinha médicos e enfermeiros. Levaram os doentes para uma enfermaria ao lado, depois fecharam a porta, soldando-a novamente", disse um preso, sabendo que falava para rádios e televisões, além dos familiares. "Por acaso você aí recebeu um cobertor rosa, uma pasta de dente, uma escova? Pois era a minha escova, é que eu não tinha dinheiro para comprar uma nova e mandei a minha mesmo. Não estou bem. A sua mãe disse para eu ir para a casa dela, mas eu preferi vir para a porta, fazer manifestação junto com as outras. Te amo e juro: jamais vou te abandonar", escreveu a namorada do preso Juliano Aparecido Gardino. As cartas renovam juras de amor. Como a da jovem Camila, 17, que conheceu o namorado na cadeia, nas visitas ao irmão, também preso. Ela não tem notícias do rapaz desde 14 de junho, quando o visitou pela última vez. "Eu fico aqui pensando como você está, se está machucado, se está com dor, se está se alimentando, se está tomando banho. E o que mais me preocupa é o frio que está fazendo. Não vejo a hora de beijar a tua boca de novo, sentir a sua pele, seu cheiro gostoso, ver você sorrindo. Você é tudo de bom." Ontem, no começo da noite, os parentes uniram-se todos ao lado da muralha do presídio. Juntos, gritavam "Salve". Um instante depois, ouviam-se as vozes do outro lado, em uníssono grave: "Salve". N. teve a impressão de identificar a voz do pai no meio do coro e avisou a mãe de sua descoberta. A mãe chorou.


Colaborou a repórter-fotográfica MARLENE BERGAMO


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