São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TIRO NA ESCOLA

Cida Maria diz que não imaginou ser alvo de violência de alunos; ela costuma transmitir mensagens pacifistas em classe

Professora baleada quer dar colo a agressor

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Não irei alimentar nenhum sentimento ruim contra quem me deu o tiro. Nenhum. Quando me vem à cabeça o que aconteceu, lembro que meu agressor é uma criança, apenas uma criança. E penso em afagá-la, em pegá-la no colo, em lhe aconselhar: "Não faça mais isso"."
A professora Aparecida Maria dos Santos Vecchi, 44, ainda falava com dificuldade ontem de manhã. Respirava devagar, exibia hematomas nos braços e reclamava de dores. "Dói, entende? E dói forte -para me mexer, para caminhar, para tudo."
Na última segunda-feira, Cida Maria, como os estudantes costumam chamá-la, levou um tiro pelas costas enquanto lecionava. A bala saiu de um revólver calibre 38 e lhe atravessou o tórax, pouco acima do seio esquerdo.
A agressão ocorreu por volta das 7h30 na escola pública Ordânia Janone Crespo, que o governo do Estado mantém em Santo André (Grande São Paulo). A polícia sustenta que E.M.S., 13, aluno da 7ª série, disparou a arma durante uma aula de português. O menino, preso, afirma que só se pronunciará sobre o caso em juízo.
Ontem, pela primeira vez, a professora se manifestou. Internada no décimo andar do Hospital do Servidor Público Estadual (zona sul paulistana), já não corre risco de morte e deverá ter alta em breve.
"Não sei quem atirou, nem de que maneira, nem por quê. Estava de costas. O garoto que acusam é mesmo meu aluno. Não posso, no entanto, confirmar nada." Chorando, diz acreditar que o autor do disparo agiu "sem querer". "Acho que não fez de propósito."
Cida define a agressão como "estupidamente" inusitada. "Nunca vi armas de perto, em lugar nenhum, muito menos na escola. E jamais cogitei sofrer algo do gênero. Claro que leio notícias sobre violência nos colégios, mas não imaginei que aconteceria dentro de minha sala."
Não imaginou porque sempre buscou disseminar "mensagens pacifistas" em classe. Todos os anos, no primeiro dia letivo, propõe "um pacto" para os estudantes. "Peço que nos respeitemos. Sugiro que a amizade e a franqueza guiem nosso relacionamento. Em geral, funciona. Procuro me portar com descontração, e as turmas me tratam carinhosamente."
A professora também cultiva o hábito de escrever "pensamentos positivos" na lousa antes de iniciar qualquer aula. São frases bíblicas ou filosóficas, que coleciona há tempos. Por exemplo: "Os homens amontoam os erros cometidos e criam um monstro, que chamam de destino".
Na segunda-feira em que a agrediram, Cida redigiu a mensagem de praxe ("A felicidade não está nos bens materiais, mas em nós"), checou a lista de presenças (a classe tem 38 alunos) e começou uma aula sobre verbos transitivos. "Parecia um dia normal."
Os estudantes se mostravam tranquilos e faziam silêncio quando a professora lhes deu as costas. "De repente, ouvi um estampido. Virei-me assustada: "Nossa, acho que estourou uma bomba". Logo senti falta de ar: "Gente, não consigo respirar. Acho que a bomba estourou em mim". Aí meu peito e minhas costas esquentaram. Olhava para os garotos, mas não via a carinha deles. Era como se falasse sozinha."
Uma aluna se aproximou e a conduziu pelo braço até a porta da sala. "No corredor, encontrei uma colega e lhe disse: "Nilva, levei um tiro. Um tiro no coração"."
Passaram-se uns minutos, e Cida desmaiou. Mal recobrou a consciência, avistou -ainda na escola- a menina que a conduzira. "Ela gritava: "Não morre, professora, não morre"."
Casada com um metalúrgico aposentado e mãe de três filhos, Cida exerce a profissão desde 1981. Dá 32 aulas semanais, de português ou inglês, sempre em colégios públicos. Ganha cerca de R$ 1.000 por mês.
Evangélica (ou simplesmente "cristã", como prefere), crê que Deus livrou-a da morte. "Sua mão desviou a bala."
Evita responder com clareza se retornará à rotina escolar. Não diz nem sim nem não. Apenas volta a mencionar Deus ("Ele conduz minha carreira") e ressalta: "Amo o magistério, e o tiro não alterou em nada o meu amor".



Texto Anterior: Mortes
Próximo Texto: Conselho pede interdição de cela de menores
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.