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São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2003

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SER PAULISTANO

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

É possível um cidadão amar muito uma cidade, e ter muito medo dessa mesma cidade?
A julgar pelo último debate sobre "A Vida na Metrópole", que a Folha promoveu na sexta-feira, este cidadão dividido existe e é morador de São Paulo. O debate sobre o tema "Ser Paulistano" foi aberto pelo mediador e articulista Gilberto Dimenstein com uma provocação:
"O paulistano, esse sujeito existe?". Que cidadão é esse que faz juras de amor a uma cidade violenta, que "não tem paisagens, que nunca vai ficar bonita, que não há plástica que resolva, que está condenada a feia e sitiada?"
Do debate, realizado no Museu Brasileiro de Escultura e com apoio da Uni-FMU, participaram a psicanalista Eleonora Mendes Caldeira, a editora de moda e colunista da Folha Erika Palomino, a empresária Lilian Gonçalves e o publicitário Washington Olivetto.
O debate foi precedido de uma tempestade que provocou atrasos e grandes congestionamentos na cidade. "Aqui somos reféns do acaso e das intempéries", observou o mediador.
As provocações não impediram que a primeira rodada fosse uma fileira de declarações de "amor a São Paulo". Falavam de uma "energia muito especial" que a cidade emana, de "um palpitar" que nos anima, e de um espírito de trabalho que irmana a todos.
Lilian Gonçalves, proprietária da rede Biroska, contou que deixou Patos de Minas e escolheu São Paulo por ter nome de santo. Quando desembarcou aqui, na antiga rodoviária, então com 17 anos, começou no mesmo dia como garçonete da Sopa Carioca, na avenida Rio Branco. "Logo percebi que São Paulo era a cidade do trabalho e que esse era o meu destino. Há 33 anos, não trabalho menos que 20 horas por dia."

Morrer por São Paulo
Seu primeiro barzinho de pão de queijo virou hoje uma rede de nove casas, com "60 mil clientes por mês". "Eu morreria por São Paulo, porque São Paulo é trabalho, e eu amo o trabalho."
Erika Palomino é carioca e também aos 17 anos sentiu que "tinha de vir para cá". "Eu sentia essa necessidade, era uma urgência, como um contato imediato."
Ela observa que no Rio as pessoas perguntam primeiro "onde você mora", enquanto aqui elas querem saber "o que você faz". "Eu na época estudava e cuidava do filho. Sem fazer algo, é muito difícil entrar em São Paulo."
Hoje, Erika Palomino, como os demais que formaram a mesa, são procurados e ouvidos como personagens que representam a cidade. "São Paulo me deu a oportnidade de interferir, de fazer minha parte, deixar minha marca."
Entre o que acha que fez e vem fazendo, foi penetrar no "underground" da cidade e trazê-lo à tona. "São Paulo é como se tivesse uma cidade por baixo desta cidade. Meu trabalho no jornal sempre foi mostrar o que havia debaixo da cidade visível." Nos seus elogios à cidade que adotou, estão frases como: "que bom que aqui não é Nova York, nem Londres, nem Paris. É melhor".
O publicitário Washington Olivetto faz graça quando diz que o melhor de São Paulo é "estar a apenas 40 minutos do Rio". Para completar com uma frase conhecida e repetida: "O grande fascínio de São Paulo é sua cultura de contrastes." Ele revela um diferencial da cidade que costuma relatar lá fora quando dá suas palestras: "Eu moro na última cidade do mundo onde você vê mulher bonita em ponto de ônibus. É a graça da miscigenação."

"A cidade é minha rua"
A psicanalista Eleonora Mendes Caldeira citou trechos do livro "As Cidades Invisíveis" de Ítalo Calvino (1923-1985) para dizer que a cidade depende das perguntas que você faz a ela. "Minha cidade é a rua onde brinquei", diz. "Quando se é criança, a gente não mora numa cidade, mora num bairro, numa rua." Seus avós moravam em Perdizes e ela conta que via rebanhos de carneiro por onde hoje corre a avenida Sumaré.
O pai, funcionário da prefeitura, conhecedor da cidade e dos seus subterrâneos, levava a família no seu "Citroen pretinho" para mostrar cada museu, cada praça.
"Depois veio a adolescência, as "bandolas" subindo e descendo a rua Augusta." Para ela, sua São Paulo "era era mais caipira, conservadora, menos agressiva". "O que não mudou foi a qualidade das pessoas, trabalhadoras, estudiosas." Na Biblioteca Mário de Andrade, ela se recorda dos rapazes concentrados, em silêncio.

"Boca de mil dentes"
A São Paulo, como "uma grande boca de mil dentes" -como disse Erika Palomino citando Mário de Andrade (1893-1945)- vai se transformando da mescla cultural à cidade quase sitiada, onde seus habitantes se sentem mais reféns que moradores.
Alguém na platéia quis saber de Olivetto se ele mudou sua relação com a cidade de dois anos para cá. Em dezembro de 2001, Olivetto foi sequestrado e passou 53 dias no cativeiro. Desde então, não caminha mais só pelas ruas nem transita com os vidros abertos.
"Eram gestos que eu valorizava, caminhar, ir a pé ao Pacaembu, entrar em lojas, observar as pessoas, até como dever de profissão. Não é normal, é sanatorial, uma estrutura de segurança como a que tenho de ter hoje."

Seguranças e blindados
Quando São Paulo vira medo, cada um tem seu relato. "Meu estômago trava a cada sinal fechado", diz Palomino. Seu filho adolescente está estudando na Inglaterra. "É triste saber que estou mais tranquilo com ele assim tão longe. Quando ele está aqui, vivo assustada enquanto não chega."
Lilian Gonçalves viu no medo uma ameaça também para seus negócios e assumiu aquilo que caberia ao Estado. "No nosso bairro, o de Santa Cecília, nós esquecemos a segurança pública. Eu pago seguranças. Há 32 anos nunca houve um assalto na minha rua. Tive que fazer por mim e por meus clientes. Quando saio fora do meus quarteirão, vou de segurança e carro blindado."
Construir fossos e muralhas em torno da cidade, como na Idade Média. Controlar suas entradas, vigiar estranhos, responder à violência com mais homens armados. "A resposta não virá daí", diz Eleonora Caldeira. Para ela, cada um poderia aproveitar o aniversário da cidade para assumir pequenos gestos, "ser mais delicado no trânsito, respeitar a lei do silêncio, pensar na lei de edificações, para que a cidade fique mais bonita."

"Doce permissividade"
Para que o fecho não fosse o do medo, os debatedores lembraram a "cidade que não dorme nunca", "onde se pode jantar de madrugada", "tomar um uísque às 8 da manhã". "Não há festa boa que comece antes da 1h. E muitas casas abrem depois das 4 da nanhã para atender os que estão deixando outros bares", diz Erika Palomino. "São Paulo é hoje a cidade mais boêmia do mundo", contabiliza Lilian Gonçalves.
Também é a que tem mais gays no país, e são eles que "estão dando lições de tolerância a todos nós", observou Erika Palomino. Para Olivetto, São Paulo "tem uma doce permissividade".



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