São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2007

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WALTER CENEVIVA

Cana ou cano

O sonho dos lucros rápidos que podem resultar da cana na produção do etanol é assunto do dia

A CIÊNCIA PURA DO direito, na forma sustentada por Hans Kelsen, deve excluir as ligações com todas as outras ciências. Há de vir limpa de referências cruzadas com outros campos. Do ponto de vista filosófico, é o grande marco do pensamento jurídico no século 20, mas, no dia a dia da vida, deixa espaços sem solução.
É fácil um exemplo atual. No direito internacional e dos tratados, dia após dia temos discutido as relações entre Brasil e Bolívia. A alta nos preços do petróleo, a possível escassez do gás boliviano e a instabilidade no país vizinho estimularam preocupações com a eficácia legal da defesa de nossos interesses.
O sonho dos lucros rápidos que podem resultar da cana na produção do etanol é assunto do dia. Repete-se o fenômeno da soja e de outros produtos agrícolas. A esperança da riqueza obtida a curto prazo movimenta as relações jurídicas e, com certa freqüência, desmorona -quando o produto ou a criação animal, que pareciam abençoados, mergulham no descrédito do mercado internacional. Os laranjais da Flórida têm repetido essas alternativas, nos tempos de inverno forte ou fraco, estimulando ou enfraquecendo a produção.
Vivemos agora a glória da cana, que já dava origem ao açúcar, às bebidas. Chegamos à era do etanol, que tem rendido, embora muito discretamente, um bom número de processos. Foram abertos até mesmo contra decisões de prefeitos que limitaram as áreas para o plantio de cana em seus municípios. Sindicatos entraram com medidas judiciais argumentando com a Constituição (quem pode legislar sobre direito agrário é a União). Argumentam com os direitos do município, nos assuntos próprios deles, sustentando que só podem compreender o solo urbano. A questão jurídica corre na sombra, sem maior repercussão, mas o assunto merece atenção.
A regra geral em matéria de imóveis rurais os subordina à sua função social, por expressa definição constitucional. Isso se vê, desde logo, no artigo 5º. Trata dos direitos fundamentais. Nele, apesar de assegurar a inviolabilidade da propriedade, afirma que esta deve satisfazer requisitos de sua função social, como definida, no caso de imóveis rurais, pelo artigo 186. A área agricultável deve cumprir simultaneamente os elementos inerentes à função social, "segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei". Deve ter aproveitamento adequado, de modo a colher os resultados dos recursos naturais e não gerar destruição irracional da natureza.
Do ponto de vista exclusivamente voltado para a lei, os agricultores e seus sindicatos querem ter a liberdade que lhes vem do artigo 5º da Constituição. Do ponto de vista ambiental, o direito tem outras razões. Conflitam com a exploração econômica na busca do equilíbrio e escapando das razões jurídicas. Pensemos que os magnatas do petróleo agüentem, durante bom tempo, do processo extrativo e de refino, a preços baratos, quando todos os novos canaviais estejam plantados. Será suficiente para causar imensos prejuízos a quem tenha optado pelo etanol. Nem é preciso ir ao exterior: os números afirmados pela Petrobras no projeto Tupi não são jurídicos, mas trazem a luz amarela do cuidado. A cana pode dar um cano.


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