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WALTER CENEVIVA
Cana ou cano
O sonho dos lucros rápidos que podem resultar da cana na produção do etanol
é assunto do dia
A CIÊNCIA PURA DO direito, na
forma sustentada por Hans
Kelsen, deve excluir as ligações com todas as outras ciências.
Há de vir limpa de referências cruzadas com outros campos. Do ponto
de vista filosófico, é o grande marco
do pensamento jurídico no século
20, mas, no dia a dia da vida, deixa
espaços sem solução.
É fácil um exemplo atual. No direito internacional e dos tratados,
dia após dia temos discutido as relações entre Brasil e Bolívia. A alta nos
preços do petróleo, a possível escassez do gás boliviano e a instabilidade
no país vizinho estimularam preocupações com a eficácia legal da defesa de nossos interesses.
O sonho dos lucros rápidos que
podem resultar da cana na produção
do etanol é assunto do dia. Repete-se o fenômeno da soja e de outros
produtos agrícolas. A esperança da
riqueza obtida a curto prazo movimenta as relações jurídicas e, com
certa freqüência, desmorona
-quando o produto ou a criação animal, que pareciam abençoados,
mergulham no descrédito do mercado internacional. Os laranjais da
Flórida têm repetido essas alternativas, nos tempos de inverno forte
ou fraco, estimulando ou enfraquecendo a produção.
Vivemos agora a glória da cana,
que já dava origem ao açúcar, às bebidas. Chegamos à era do etanol, que
tem rendido, embora muito discretamente, um bom número de processos. Foram abertos até mesmo
contra decisões de prefeitos que limitaram as áreas para o plantio de
cana em seus municípios. Sindicatos
entraram com medidas judiciais argumentando com a Constituição
(quem pode legislar sobre direito
agrário é a União). Argumentam
com os direitos do município, nos
assuntos próprios deles, sustentando que só podem compreender o solo urbano. A questão jurídica corre
na sombra, sem maior repercussão,
mas o assunto merece atenção.
A regra geral em matéria de imóveis rurais os subordina à sua função
social, por expressa definição constitucional. Isso se vê, desde logo, no
artigo 5º. Trata dos direitos fundamentais. Nele, apesar de assegurar a
inviolabilidade da propriedade, afirma que esta deve satisfazer requisitos de sua função social, como definida, no caso de imóveis rurais, pelo
artigo 186. A área agricultável deve
cumprir simultaneamente os elementos inerentes à função social,
"segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei". Deve
ter aproveitamento adequado, de
modo a colher os resultados dos recursos naturais e não gerar destruição irracional da natureza.
Do ponto de vista exclusivamente
voltado para a lei, os agricultores e
seus sindicatos querem ter a liberdade que lhes vem do artigo 5º da
Constituição. Do ponto de vista ambiental, o direito tem outras razões.
Conflitam com a exploração econômica na busca do equilíbrio e escapando das razões jurídicas. Pensemos que os magnatas do petróleo
agüentem, durante bom tempo, do
processo extrativo e de refino, a preços baratos, quando todos os novos
canaviais estejam plantados. Será
suficiente para causar imensos prejuízos a quem tenha optado pelo etanol. Nem é preciso ir ao exterior: os
números afirmados pela Petrobras
no projeto Tupi não são jurídicos,
mas trazem a luz amarela do cuidado. A cana pode dar um cano.
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