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PASQUALE CIPRO NETO
"Um grande cardume de peixes"
Na escalada do telejornal, anuncia-se uma matéria sobre um banquete cujos comensais são tubarões. O cardápio? "Um grande cardume de peixes", diz o apresentador.
"Cardume" é substantivo coletivo. De quê? De peixes, não? Nem
sempre. No "Aurélio", além do
significado de "bando de peixes"
(o primeiro), encontram-se estes,
precedidos da classificação "fig."
(sentido figurado): "2. Bando,
multidão, ajuntamento de pessoas. 3. Grande porção de coisas;
aglomeração, montão.". Da última acepção, o dicionário dá este
exemplo, de Antônio Feliciano de
Castilho: "As estrelas em cardumes / silenciosas vão passando".
Como se vê, o que num primeiro
momento pode parecer caso clássico de redundância muitas vezes
acaba se transformando em belo
material de reflexão. Cá entre
nós, não é nada fácil dizer se em
determinado caso ocorre ou não
ocorre a bendita redundância ou
o bendito pleonasmo.
O leitor diria que viu "ambos os
dois" passeando pela rua? Pois esse é um dos tantos casos complicados. Nos escritores clássicos,
não faltam registros do emprego
de "ambos os dois", "ambos e
dois" e "ambos de dois". O "Aurélio" registra essas expressões, que
classifica como formas pleonásticas de "ambos", e diz que ainda
são muito usadas pelo povo.
Em se tratando de língua formal, fico com o que diz o professor
Domingos P. Cegalla em seu "Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa": "Redundância
usada por escritores clássicos, mas
que hoje deve ser evitada". Em seguida, Cegalla diz que "ambos" já
significa "os dois" e dá este exemplo: "João e Paulo são irmãos;
ambos trabalham na mesma empresa". Há quem exagere e veja
aberrações em expressões como
"crianças de ambos os sexos".
"Ambos" significa "um e outro",
"os dois", e não "os dois juntos".
Crianças de ambos os sexos são
apenas meninos e meninas.
O caso de "ambos" mostra bem
o que são os eternos movimentos
das línguas: o que hoje é bom um
dia não foi, e vice-versa. O leitor
diria tranquilamente que a caligrafia de determinada pessoa é
bonita, não diria? Pois o sentido
literal de "caligrafia" é "bela grafia". O tempo não só apagou dos
falantes a noção do sentido literal
de "caligrafia" como também
consagrou expressões ("bela caligrafia", "caligrafia bonita") que,
literalmente, são redundantes.
Na verdade, esse caso não se encerra aí: o sentido da palavra "caligrafia" mudou. Deixou de ser o
literal e passou a ser "arte de escrever à mão segundo determinadas regras e modelos" e, por extensão, "maneira própria de cada
pessoa escrever", "letra", "letra
manuscrita". Como se vê, cada
caso é um caso. O que manda nessa história é mesmo o uso.
Bem, voltemos ao caso do
"grande cardume de peixes". Por
se tratar de um telejornal, em que
o texto acompanha as imagens
(ou vice-versa, outra bela discussão), teria sido adequado o uso da
especificação "de peixes" para
"cardume"? Provavelmente não,
uma vez que a imagem fala por si.
Nesse território da linguagem, a
especificação se justificaria se se
informasse de que tipo de peixe se
tratava ("um grande cardume de
sardinhas", por exemplo). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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