São Paulo, quinta-feira, 09 de janeiro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Um grande cardume de peixes"

Na escalada do telejornal, anuncia-se uma matéria sobre um banquete cujos comensais são tubarões. O cardápio? "Um grande cardume de peixes", diz o apresentador.
"Cardume" é substantivo coletivo. De quê? De peixes, não? Nem sempre. No "Aurélio", além do significado de "bando de peixes" (o primeiro), encontram-se estes, precedidos da classificação "fig." (sentido figurado): "2. Bando, multidão, ajuntamento de pessoas. 3. Grande porção de coisas; aglomeração, montão.". Da última acepção, o dicionário dá este exemplo, de Antônio Feliciano de Castilho: "As estrelas em cardumes / silenciosas vão passando".
Como se vê, o que num primeiro momento pode parecer caso clássico de redundância muitas vezes acaba se transformando em belo material de reflexão. Cá entre nós, não é nada fácil dizer se em determinado caso ocorre ou não ocorre a bendita redundância ou o bendito pleonasmo.
O leitor diria que viu "ambos os dois" passeando pela rua? Pois esse é um dos tantos casos complicados. Nos escritores clássicos, não faltam registros do emprego de "ambos os dois", "ambos e dois" e "ambos de dois". O "Aurélio" registra essas expressões, que classifica como formas pleonásticas de "ambos", e diz que ainda são muito usadas pelo povo.
Em se tratando de língua formal, fico com o que diz o professor Domingos P. Cegalla em seu "Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa": "Redundância usada por escritores clássicos, mas que hoje deve ser evitada". Em seguida, Cegalla diz que "ambos" já significa "os dois" e dá este exemplo: "João e Paulo são irmãos; ambos trabalham na mesma empresa". Há quem exagere e veja aberrações em expressões como "crianças de ambos os sexos". "Ambos" significa "um e outro", "os dois", e não "os dois juntos". Crianças de ambos os sexos são apenas meninos e meninas.
O caso de "ambos" mostra bem o que são os eternos movimentos das línguas: o que hoje é bom um dia não foi, e vice-versa. O leitor diria tranquilamente que a caligrafia de determinada pessoa é bonita, não diria? Pois o sentido literal de "caligrafia" é "bela grafia". O tempo não só apagou dos falantes a noção do sentido literal de "caligrafia" como também consagrou expressões ("bela caligrafia", "caligrafia bonita") que, literalmente, são redundantes.
Na verdade, esse caso não se encerra aí: o sentido da palavra "caligrafia" mudou. Deixou de ser o literal e passou a ser "arte de escrever à mão segundo determinadas regras e modelos" e, por extensão, "maneira própria de cada pessoa escrever", "letra", "letra manuscrita". Como se vê, cada caso é um caso. O que manda nessa história é mesmo o uso.
Bem, voltemos ao caso do "grande cardume de peixes". Por se tratar de um telejornal, em que o texto acompanha as imagens (ou vice-versa, outra bela discussão), teria sido adequado o uso da especificação "de peixes" para "cardume"? Provavelmente não, uma vez que a imagem fala por si. Nesse território da linguagem, a especificação se justificaria se se informasse de que tipo de peixe se tratava ("um grande cardume de sardinhas", por exemplo). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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