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GILBERTO DIMENSTEIN
Aulas de marketing de Kelly Key e da cadelinha Perepepê
A cadelinha Perepepê foi a
grande estrela, na semana
passada, da campanha contra a
fome. Sua dona, Vera Loyola, tirou-lhe um colar de ouro de 18
quilates para doá-lo ao governo.
"Não acho justo que a minha cachorrinha ande por aí com colar
de ouro enquanto milhões de pessoas passam fome no Brasil", justificou Vera Loyola.
A socialite tem um preciso faro
mercadológico. Investiu apenas
R$ 3.000 -o valor estimado do
colar- e ganhou, de volta, milhões em mídia. O gesto "canino-filantrópico" transformou-se em
notícia nacional. Se tivesse apenas anunciado que daria o dinheiro, sem especificar a fonte,
certamente não provocaria impacto. A internacionalmente exuberante Gisele Bündchen, cujo
consumo de calorias a faria candidata ao cartão-alimentação,
doou bem bem mais ao Programa
Fome Zero, mas não causou tanto
comentário como a dupla Vera
Loyola/Perepepê.
O problema do excesso de marketing, uma espécie de religião
contemporânea de políticos, empresários e artistas, é frequentemente descambar para o deboche, no qual o indivíduo vale
quanto aparece. E, de muito aparecer fazendo pouco, acaba valendo pouco.
Na semana passada, o deboche
mercadológico acabou se voltando contra o Ministério da Saúde,
também devido a outra estrela da
mídia. Será lançada antes do
Carnaval campanha contra a
Aids protagonizada pela cantora
Kelly Key, na suposição de que ela
é referência para a juventude.
Em nota oficial, o ministério explicou que a cantora, nas suas
músicas, "assume-se como mulher vaidosa, dominadora e que
sabe o que quer". Não explicou,
porém, como um governo que
tem na alta cúpula tanta gente
que por tanto tempo se perfilou
ao lado dos direitos femininos
conduz à condição de educadora
de jovens uma pessoa que se notabiliza pela futilidade e pelo papel
de mulher-objeto.
Nada contra o fato de ela se
apresentar sem roupa onde quiser
e para quem quiser. Nem contra o
fato de cantar as bobagens que
quiser. Daí ao poder público, com
o dinheiro de contribuinte, dar-lhe status pedagógico vai uma
longa distância.
A fúria mercadológica tem explicação. Nunca se produziram
tantas inovações, idéias e produtos em tão pouco tempo. Graças
aos novos meios de comunicação,
nunca foi tão fácil transmitir
uma informação, mas também
nunca foi tão difícil, pela mesma
razão, fazer-se ouvir. Está justamente nisso um dos maiores problemas da educação. Está cada
vez mais difícil fazer os estudantes encontrarem-se e descobrirem
sentido na torrente de dados lançados em tempo real.
Idéias, produtos, modas, rostos,
empresas, marcas têm o prazo de
validade reduzido em meio à
competição global. Se para a iniciativa privada o desafio de aparecer e de assegurar credibilidade
é gigantesco e diário, imagine para os governos e políticos, rodeados de crônica desconfiança.
Acrescente-se a febre das pesquisas da opinião, que faz o governante ser avaliado várias vezes por ano, sedução para que se
lancem planos de curtíssimo prazo. Para piorar, a mídia é viciada
em eventos, sempre apetitosos ao
leitor, e tem certa ojeriza pelos
aborrecedores processos.
Um notável exemplo de disparidade entre o que se anunciou e o
que se executou é o Fust (Fundo
de Universalização dos Serviços
de Telecomunicações). O governo
passado jurou que, com esses recursos, o Brasil romperia a barreira da exclusão digital. Seriam conectadas à internet escolas, centros de saúde e bibliotecas. Tirou-se dos brasileiros R$ 1,8 bilhão
-exatamente a verba prometida
para a campanha de combate à
fome. O dinheiro continua parado, e os novos dirigentes, às voltas
com suas promessas, ainda não
sabem como utilizá-lo.
Em meio à redenção do Fust,
alardeou-se também, nos governos federal, estadual e municipal,
a compra de computadores que,
ligados à internet, modernizariam as escolas. Compraram-se
centenas de milhares de computadores, mas, salvo algumas exceções, os professores não foram reciclados. Resultado: laboratórios
de informática fechados ou com
baixo aproveitamento.
O marketing que ronda a prioridade da luta contra a fome é correto e até agora tem atraído uma
enorme adesão nacional, o que
revela a sensibilidade de Lula
tanto política como social. Mas,
como mistura a necessidade de
aparecer com a vontade de atacar
a subnutrição, o plano corre o risco de ficar associado, no imaginário, à "consistência social" de
uma Vera Loyola e de sua cachorrinha Perepepê. E assim se terá
perdido mais uma grande oportunidade de criar uma mobilização nacional contra a miséria.
Exemplo de inconsistência. Ganha os flashes quem faz a doação
-o que é ótimo. Poucos sabem,
no entanto, que a logística, ou seja, os meios de armazenar e entregar o produto, detalhes técnicos
aborrecedores, não está definida,
o que é um prenúncio de desperdício. É a distância entre o evento,
fácil de registrar, e o gerenciamento cotidiano.
A fúria mercadológica tem seu
próprio antídoto. Com a mesma
intensidade e rapidez com que se
produz uma ilusão, vem o esquecimento.
PS - Está para ser anunciado
neste mês pela Prefeitura de São
Paulo um programa de estímulo
aos cursinhos pré-vestibulares
gratuitos para facilitar o ingresso
de alunos de escolas públicas nas
faculdades. É um avanço. As cotas universitárias para pobres e
negros são bem-intencionadas,
mas beiram o marketing. Consistente (embora de longo prazo e
custoso) é melhorar o ensino médio público e apoiar os cursinhos
pré-vestibulares gratuitos.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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