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São Paulo, segunda-feira, 09 de junho de 2003

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CELOBAR

Pelo menos cinco pessoas já tinham morrido; parentes de vítimas do contraste relatam "loteria da desgraça"

Alerta foi feito uma semana após morte

FABIANE LEITE
ENVIADA ESPECIAL A GOIÂNIA

O laboratório Enila do Rio de Janeiro veio a público explicar que havia algum problema com o lote 3040068 do Celobar uma semana depois de começarem a ocorrer mortes relacionadas ao contraste utilizado em exames radiológicos.
Era dia 26 de maio, uma segunda-feira, quando a empresa publicou um anúncio de pé de página no jornal "O Globo" em que comunicava o recolhimento do lote por estar "impróprio ao uso, podendo causar diarréia, dor abdominal e vômito". Em Goiás, pelo menos cinco pessoas já tinham morrido após tomar a droga.
Na sexta-feira passada, a vigilância sanitária descobriu que o contraste estava contaminado por altas quantidades de substâncias tóxicas. Um dos donos do Enila, Márcio D'Icarahy, deverá depor hoje à polícia do Rio.
A semana de 18 de maio, que antecedeu o anúncio, foi a da "loteria da desgraça" para os pacientes, como diz, melancólico, o advogado Jorge, marido de uma das vítimas. A maior parte dos 4.500 frascos do lote em questão foi parar em Goiás.
No dia 18, um domingo, o mecânico José Pedro Mateus, 38, estava em casa com a família. "Vou fazer um exame amanhã", disse a uma das cunhadas.
Na segunda-feira ensolarada tomou o ônibus com a mulher, Maria Ivonete, e chegou ao laboratório por volta das 7h30, para fazer o raio-X do esôfago. Nos últimos tempos, ele andava engasgando com a comida.
Para voltar à casa, na periferia de Goiânia, chamou a ajuda de um amigo que tem carro. No caminho, a barriga revirava, doía. "Ele era um homem forte, de mais de 100 kg, que parecia ter emagrecido quilos em algumas horas", descreve Maria Ivonete, que correu para o centro de saúde logo depois de chegar em casa.
Em dois postos não havia médicos. No último, José Pedro recebeu soro. A enfermeira chegou a fazer uma brincadeira sem graça: "não é hoje que a senhora fica viúva". "Vou morrer", contestou José Pedro mais tarde, já em uma cadeira de rodas, no hospital para o qual foi transferido.
pós 14 horas, o homem saudável, chamado de Maguila pelos amigos, morreu.

Dia das mães
Um domingo antes, Dia das Mães, a professora de inglês Rejane Lapolli Azevedo Ferreira, 51, recebeu uma cesta com presentes do Canadá. Posou para fotos para enviar ao filho que vive fora do país e fizera a surpresa. Iria enviar para ele. "Não deu tempo", afirma o marido, Jorge.
No dia 20 de maio, às 10h, Rejane já estava em uma das melhores clínicas de Goiânia para o exame de contraste. Queria saber de uma vez o que era aquela gastrite leve. "Quando chegou em casa, o rosto dela repuxava", relembra Jorge.
O marido discou inúmeras vezes o número de celular do médico que pediu o exame. Não o encontrou até algumas horas antes da morte da mulher.
No dia em que Rejane morreu, 21 de maio, José Emílio passou a tarde desesperado, ajoelhado ao lado da mulher. Não conseguia tirá-la da cama. Suando muito, os dedos roxos e vomitando, ela não tinha forças. A empregada doméstica Marizete Franco Felix de Barros, 41, havia feito um exame com o contraste Celobar. Sentia-se "embuchada".
José Emílio comprou dois frascos de Celobar na farmácia, lembra bem. A clínica é que havia pedido. Marizete acredita que "por ser jovem" não morreu. É um dos 105 casos registrados em Goiás de pessoas que passaram mal mas sobreviveram.
Quando conseguiu andar foi recusada em dois atendimentos públicos porque os médicos diziam a ela que não sabiam o que fazer.
Segundo a Vigilância Sanitária de Goiás, quando ela procurou as unidades "já não estava tão mal". Na última sexta, recorreu novamente à vigilância e foi pela primeira vez à polícia. Decidiram interná-la no Hospital de Urgências para tratar a fraqueza decorrente da intoxicação.

Gosto ruim
Às 10h do dia 22 morreu Otávio Gonçalves de Lima, 63. Em 24 horas, perdera o movimento dos braços e pernas. "Este remédio do mesmo jeito que entra, sai", dizia o médico pouco antes.
No dia seguinte morreu a cabeleireira Aldenora Izídio da Silva, 56 . O gosto está muito ruim, parece maisena crua", reclamou ela a amiga Elza depois de engolir o contraste. Depois do exame, foi levada para casa por Eduardo, estudante de direito. "Vou fazer o almoço para o seu pai", disse, disfarçando o mal estar.
Por volta das 13h, o filho mais novo, de 13 anos, saiu à procura de ajuda. Ainda não voltara quanto o telefone tocou. Era outra amiga de Aldenora. Ela demorou para atender. "Vem para cá que eu tô morrendo sozinha", disse quando pegou o telefone.
Mais tarde, a clínica radiológica informou à polícia que Aldenora teria tomado contraste de outra marca, o Bariogel. Mas a Agência Nacional de Vigilância Sanitária descartou a possibilidade da outra droga ter alguma relação com a morte da cabeleireira.
Na capela do hospital, o corpo de Nivaldo Belchor, outra morte relacionada ao Celobar, foi velado ao lado do de Aldenora. As famílias comentavam sobre o contraste. Desconfiavam que algo estava errado, mas ninguém ouviu.



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