São Paulo, domingo, 09 de agosto de 2009

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"Fumar é bom, parar é melhor"

Após sete meses de espera, repórter faz o tratamento gratuito oferecido pelo Estado e consegue largar o cigarro

ROGÉRIO PAGNAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Ninguém acreditava que eu pudesse parar de fumar.
Nem eu.
Quem nunca fumou não sabe quão prazeroso é. É incapaz de compreender a sensação de uma boa tragada após um dia estafante de trabalho, ou após um gole de uma cerveja gelada num dia quente ou, ainda, depois de um café após o almoço. Jamais entenderá como aquele pequeno e inanimado objeto chega a ser companhia (e das melhores) nos momentos de solidão ou de festa. Traduzindo: eu gosto de fumar.
Mesmo com esse sentimento, decidi participar de um programa público para tabagistas e seguir à risca tudo o que me indicassem. E assim o fiz.
Aproveitei a abertura de uma vaga no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), do governo do Estado. Havia me inscrito nesse programa mais de sete meses atrás, quando ainda fazia uma reportagem sobre os serviços oferecidos a quem quer abandonar o cigarro, publicada em 7 setembro de 2008.
Isso mesmo: demoraram sete meses para me chamar. O Cratod é a única opção para quem mora ou trabalha na região central de São Paulo.

PRIMEIRO CONTATO
Em 28 de abril, enfim, cheguei ao Cratod: rua Prates, 165, no Bom Retiro. Às 7h40, já havia uma fila de umas 30 pessoas. E não era exclusiva para dependentes do tabaco. Havia viciados em cocaína, crack, maconha, álcool e "outras drogas".
Muito ruim é a sensação em se ver colado no mesmo patamar de outros dependentes químicos. Estar com eles só aumentava minha vontade de sair correndo dali e me tratar sozinho em casa.
Passado o balcão de atendimento, você sente certo alívio ao ser separado dos outros viciados. É levado para a coleta de sangue, medições corporais, análise de dentista e preenche uma série de questionários. Tudo será usado mais tarde contra você no "tribunal".
A advogada Maria Corina de Almeida Costa, minha colega de tabagismo, traduziu o sentimento reinante. "Aqui a gente se sente um doente", disse. E se corrigiu em seguida. "A gente é doente. A gente é doente", repetia. Nesse primeiro dia, de fato, você se sente um doente.
Nas semanas seguintes, passa a admitir a verdadeira situação: de ser um doente crônico. Passa a não se importar em dividir a espera com um grupo de outros tipos de dependentes.
No dia 6 de maio, entramos no tratamento de fato. Descobre-se, então, a importância de ser tratado como um doente crônico. E fica feliz por isso.
Em vez de ouvir que chupar balas ou chicletes pode substituir o cigarro, como me aconselharam no 0800 do "Pare de Fumar" do Ministério da Saúde, são dadas ali explicações científicas de por que é tão difícil abandonar esse vício.
Explicam, por exemplo, que a nicotina é absorvida por determinados neurotransmissores (pelos receptores nicotínicos) e, desse contato, é liberada ao cérebro uma substância chamada dopamina. Conhecida como a droga do prazer, ela faz o fumante se sentir bem.
É uma droga estimulante. Para continuar assim, a pessoa precisa da liberação constante (e cada vez maior) dessa droga. O vício está nesse ciclo: cigarro-nicotina-dopamina-prazer. Se a corrente é quebrada, a pessoa passa a sofrer os sintomas da abstinência. Até depressão, em alguns casos.

TRATAMENTO
O tratamento é feito por uma equipe médica (de nutricionista a acupunturista). Uma simpática psicóloga, Selma Rejane Setani, é quem dá a importante notícia. "Vocês terão de parar de fumar hoje. Ou, no máximo, até amanhã", disse, sem rodeios. "Quem não se sentir preparado, pode ficar para a próxima turma."
Mesmo em um programa para tabagistas, a reação da turma (19 pessoas; leia depoimentos após o tratamento nesta página) foi a mesma (ou até pior) de um anúncio de invasão alienígena. Ouvi até um gemido. Um fumante olhava para o rosto do outro com incredulidade, como se questionassem: "E agora?".
O aposentado João da Silva Leite, 72, confessou um sentimento que a maioria engoliu. "Eu acho que não consigo parar de fumar assim não", disse.
Naquela noite, fiz todo um ritual para fumar o último cigarro. Na verdade, fumei vários. Mas me despedi dele como se fosse um grande amigo rumo a uma viagem sem volta.
Sem volta, mas, por via das dúvidas, coloquei o resto do maço, com uns dez cigarros, em cima da geladeira. "Vou deixá-lo aqui para uma situação de emergência." Não estava nem um pouco convicto de que conseguiria passar sem eles.
Na manhã seguinte, comecei com a medicação indicada. No Cratod, você recebe tudo de graça. Em vez de ir para a cozinha tomar um café e seguir para área de serviço acender o cigarro, como fazia, fui direto para o chuveiro. "Quebrar as rotinas", lembrei da psicóloga.
Em frente ao espelho, e com uma crescente vontade de fumar, rasguei o envelope do NiQuitin de 21 mg e preguei-o no braço direito. Veio na boca um leve gosto de metal e senti um pequeno formigamento no local do adesivo. Tomei, em seguida, um ansiolítico (Ansitec) -tomaria outro à noite.
Deveria fazer isso durante uma semana (nas semanas seguintes, o medicamento seria reduzido). Nesse período, os adesivos não poderiam ser pregados no mesmo local.
Esse detalhe, de não colar o adesivo no mesmo ponto durante sete dias, parece simples no começo. Mas não poder pregá-los em pontos vitais nem nas áreas com muito pelo torna a tarefa mais complicada para um homem (também não pode colá-los da cintura para baixo).
Na quarta semana de tratamento, você olha seu corpo no espelho já em partes, como nos desenhos de boi nos açougues. Divide-se em áreas como o açougueiro divide o cupim, o acém, a picanha, o filé.
Também parecia simples parar de fumar com os medicamentos. No primeiro dia, a vontade foi sumindo ao longo das horas. À tarde, já nem lembrava que fumei um dia.

REAÇÕES
Sentia-me mais lento do que o normal, meio grogue até (acredito que pelo medicamento), mas não estava ansioso, nem irritado, não sentia fissura, nada. Com quase 20 anos de tabagismo e várias tentativas de abandono do cigarro no currículo (só quem passa por isso sabe como é), estava muito desconfiado da facilidade do primeiro dia. Estava fácil demais para ser verdade.
Já na primeira madrugada, meus temores se concretizaram: pesadelos seguidos. Um após o outro deixavam meu sono extremamente agitado. Isso durou duas noites. Nas duas noites seguintes, tive insônia, algo inédito na minha vida. Da fissura, porém, nem sinal. Depois desses quatro dias, o sono se normalizou.
Nesse tratamento de 45 dias, conheci um aparelho chamado monoxímetro. Para quem não o conhece, é uma espécie de bafômetro para cigarros. Você sopra um canudo acoplado a um aparelho e um placar digital lhe informa quanto monóxido de carbono existe no seu pulmão.
É simples conferir: de 0 a 10, fumante leve. De 11 a 20, mediano. E acima de 20, pesado. Ainda não está previsto multa para quem ultrapassa os 20.
Com meus 20 cigarros diários, às vezes um pouquinho mais, o aparelho apontou 16. Fiquei imaginando quanto deveria fumar o rapaz que cravou 55, como me contou a enfermeira Relba Fritolli.
Nesse período de abstinência, passei por umas quatro grandes crises por falta do cigarro. Dias em que dizia: "Se amanhã, quando acordar, ainda estiver com essa vontade, eu volto". Felizmente, elas passaram. Fora essas crises maiores, fiquei em geral mais ríspido e falei até mais do que deveria. Regredi como pessoa.
Hoje, mais de três meses depois do último cigarro, não preciso mais de adesivos ou comprimidos. Não posso dizer, entretanto, que esteja totalmente "curado". Ainda penso nele (menos, é claro). Ainda fujo dos lugares em que posso "cair na tentação", uma técnica do tratamento. Pensei que seria mais difícil ainda do que tem sido.
Também vivi momentos simples, mas maravilhosos. E são neles que me agarro. Pude ir a um cinema, por exemplo, e não torcer para o filme não durar muito. Voltei a sentir o cheiro e o sabor das coisas (apesar de ter engordado dois quilos, até agora). E também não senti bater um desespero ao perceber o maço de cigarros chegando ao fim. Como era escravo desse vício! Fumar é ótimo. Parar é ainda melhor.


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