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"Fumar é bom, parar é melhor"
Após sete meses de espera, repórter faz o tratamento gratuito oferecido pelo Estado e consegue largar o cigarro
ROGÉRIO PAGNAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Ninguém acreditava que eu
pudesse parar de fumar.
Nem eu.
Quem nunca fumou não sabe
quão prazeroso é. É incapaz de
compreender a sensação de
uma boa tragada após um dia
estafante de trabalho, ou após
um gole de uma cerveja gelada
num dia quente ou, ainda, depois de um café após o almoço.
Jamais entenderá como aquele
pequeno e inanimado objeto
chega a ser companhia (e das
melhores) nos momentos de
solidão ou de festa. Traduzindo: eu gosto de fumar.
Mesmo com esse sentimento, decidi participar de um programa público para tabagistas e
seguir à risca tudo o que me indicassem. E assim o fiz.
Aproveitei a abertura de uma
vaga no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e
Outras Drogas), do governo do
Estado. Havia me inscrito nesse programa mais de sete meses atrás, quando ainda fazia
uma reportagem sobre os serviços oferecidos a quem quer
abandonar o cigarro, publicada
em 7 setembro de 2008.
Isso mesmo: demoraram sete meses para me chamar. O
Cratod é a única opção para
quem mora ou trabalha na região central de São Paulo.
PRIMEIRO CONTATO
Em 28 de abril, enfim, cheguei ao Cratod: rua Prates, 165,
no Bom Retiro. Às 7h40, já havia uma fila de umas 30 pessoas. E não era exclusiva para
dependentes do tabaco. Havia
viciados em cocaína, crack, maconha, álcool e "outras drogas".
Muito ruim é a sensação em
se ver colado no mesmo patamar de outros dependentes
químicos. Estar com eles só aumentava minha vontade de sair
correndo dali e me tratar sozinho em casa.
Passado o balcão de atendimento, você sente certo alívio
ao ser separado dos outros viciados. É levado para a coleta de
sangue, medições corporais,
análise de dentista e preenche
uma série de questionários. Tudo será usado mais tarde contra
você no "tribunal".
A advogada Maria Corina de
Almeida Costa, minha colega
de tabagismo, traduziu o sentimento reinante. "Aqui a gente
se sente um doente", disse. E se
corrigiu em seguida. "A gente é
doente. A gente é doente", repetia. Nesse primeiro dia, de fato, você se sente um doente.
Nas semanas seguintes, passa a admitir a verdadeira situação: de ser um doente crônico.
Passa a não se importar em dividir a espera com um grupo de
outros tipos de dependentes.
No dia 6 de maio, entramos
no tratamento de fato. Descobre-se, então, a importância de
ser tratado como um doente
crônico. E fica feliz por isso.
Em vez de ouvir que chupar
balas ou chicletes pode substituir o cigarro, como me aconselharam no 0800 do "Pare de
Fumar" do Ministério da Saúde, são dadas ali explicações
científicas de por que é tão difícil abandonar esse vício.
Explicam, por exemplo, que a
nicotina é absorvida por determinados neurotransmissores
(pelos receptores nicotínicos)
e, desse contato, é liberada ao
cérebro uma substância chamada dopamina. Conhecida
como a droga do prazer, ela faz
o fumante se sentir bem.
É uma droga estimulante.
Para continuar assim, a pessoa
precisa da liberação constante
(e cada vez maior) dessa droga.
O vício está nesse ciclo: cigarro-nicotina-dopamina-prazer. Se
a corrente é quebrada, a pessoa
passa a sofrer os sintomas da
abstinência. Até depressão, em
alguns casos.
TRATAMENTO
O tratamento é feito por uma
equipe médica (de nutricionista a acupunturista). Uma simpática psicóloga, Selma Rejane
Setani, é quem dá a importante
notícia. "Vocês terão de parar
de fumar hoje. Ou, no máximo,
até amanhã", disse, sem rodeios. "Quem não se sentir preparado, pode ficar para a próxima turma."
Mesmo em um programa para tabagistas, a reação da turma
(19 pessoas; leia depoimentos
após o tratamento nesta página) foi a mesma (ou até pior) de
um anúncio de invasão alienígena. Ouvi até um gemido. Um
fumante olhava para o rosto do
outro com incredulidade, como
se questionassem: "E agora?".
O aposentado João da Silva
Leite, 72, confessou um sentimento que a maioria engoliu.
"Eu acho que não consigo parar
de fumar assim não", disse.
Naquela noite, fiz todo um ritual para fumar o último cigarro. Na verdade, fumei vários.
Mas me despedi dele como se
fosse um grande amigo rumo a
uma viagem sem volta.
Sem volta, mas, por via das
dúvidas, coloquei o resto do
maço, com uns dez cigarros, em
cima da geladeira. "Vou deixá-lo aqui para uma situação de
emergência." Não estava nem
um pouco convicto de que conseguiria passar sem eles.
Na manhã seguinte, comecei
com a medicação indicada. No
Cratod, você recebe tudo de
graça. Em vez de ir para a cozinha tomar um café e seguir para área de serviço acender o cigarro, como fazia, fui direto para o chuveiro. "Quebrar as rotinas", lembrei da psicóloga.
Em frente ao espelho, e com
uma crescente vontade de fumar, rasguei o envelope do NiQuitin de 21 mg e preguei-o no
braço direito. Veio na boca um
leve gosto de metal e senti um
pequeno formigamento no local do adesivo. Tomei, em seguida, um ansiolítico (Ansitec)
-tomaria outro à noite.
Deveria fazer isso durante
uma semana (nas semanas seguintes, o medicamento seria
reduzido). Nesse período, os
adesivos não poderiam ser pregados no mesmo local.
Esse detalhe, de não colar o
adesivo no mesmo ponto durante sete dias, parece simples
no começo. Mas não poder pregá-los em pontos vitais nem
nas áreas com muito pelo torna
a tarefa mais complicada para
um homem (também não pode
colá-los da cintura para baixo).
Na quarta semana de tratamento, você olha seu corpo no
espelho já em partes, como nos
desenhos de boi nos açougues.
Divide-se em áreas como o
açougueiro divide o cupim, o
acém, a picanha, o filé.
Também parecia simples parar de fumar com os medicamentos. No primeiro dia, a vontade foi sumindo ao longo das
horas. À tarde, já nem lembrava
que fumei um dia.
REAÇÕES
Sentia-me mais lento do que
o normal, meio grogue até
(acredito que pelo medicamento), mas não estava ansioso,
nem irritado, não sentia fissura, nada. Com quase 20 anos de
tabagismo e várias tentativas
de abandono do cigarro no currículo (só quem passa por isso
sabe como é), estava muito desconfiado da facilidade do primeiro dia. Estava fácil demais
para ser verdade.
Já na primeira madrugada,
meus temores se concretizaram: pesadelos seguidos. Um
após o outro deixavam meu sono extremamente agitado. Isso
durou duas noites. Nas duas
noites seguintes, tive insônia,
algo inédito na minha vida. Da
fissura, porém, nem sinal. Depois desses quatro dias, o sono
se normalizou.
Nesse tratamento de 45 dias,
conheci um aparelho chamado
monoxímetro. Para quem não o
conhece, é uma espécie de bafômetro para cigarros. Você sopra um canudo acoplado a um
aparelho e um placar digital lhe
informa quanto monóxido de
carbono existe no seu pulmão.
É simples conferir: de 0 a 10,
fumante leve. De 11 a 20, mediano. E acima de 20, pesado.
Ainda não está previsto multa
para quem ultrapassa os 20.
Com meus 20 cigarros diários, às vezes um pouquinho
mais, o aparelho apontou 16.
Fiquei imaginando quanto deveria fumar o rapaz que cravou
55, como me contou a enfermeira Relba Fritolli.
Nesse período de abstinência, passei por umas quatro
grandes crises por falta do cigarro. Dias em que dizia: "Se
amanhã, quando acordar, ainda
estiver com essa vontade, eu
volto". Felizmente, elas passaram. Fora essas crises maiores,
fiquei em geral mais ríspido e
falei até mais do que deveria.
Regredi como pessoa.
Hoje, mais de três meses depois do último cigarro, não preciso mais de adesivos ou comprimidos. Não posso dizer, entretanto, que esteja totalmente
"curado". Ainda penso nele
(menos, é claro). Ainda fujo dos
lugares em que posso "cair na
tentação", uma técnica do tratamento. Pensei que seria mais
difícil ainda do que tem sido.
Também vivi momentos
simples, mas maravilhosos. E
são neles que me agarro. Pude
ir a um cinema, por exemplo, e
não torcer para o filme não durar muito. Voltei a sentir o cheiro e o sabor das coisas (apesar
de ter engordado dois quilos,
até agora). E também não senti
bater um desespero ao perceber o maço de cigarros chegando ao fim. Como era escravo
desse vício! Fumar é ótimo. Parar é ainda melhor.
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