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MOACYR SCLIAR
Quem é você, meu amor?
Quando acordou naquela manhã, assustou-se ao ver que não estava sozinho na larga cama de casal
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Henry Kerr, de 97 anos, se casou com a
namorada Valerie Berkowitz, de 87
anos, após cortejá-la durante quatro anos. Os dois se conheceram em
um asilo de Londres. Kerr diz que
era importante casar para acabar
com as fofocas: "As pessoas não podem dizer mais: "Eles estão só dormindo juntos"." FOLHA.COM
QUANDO ELE ACORDOU, naquela
manhã, teve um sobressalto. Em primeiro lugar não estava no quarto
que habitualmente ocupava na casa
geriátrica. Não, era um outro aposento, menor, porém mais luxuoso;
havia ali um televisor, e um frigobar:
um quarto de hotel, portanto.
Como viera parar ali? Um problema intrigante, mas não incomum:
aos 97 anos e tendo frequentes lapsos de memória, já se conformara
com situações semelhantes àquela.
Susto de fato foi ver que não estava sozinho na larga cama de casal;
a seu lado, adormecida, havia uma
mulher. Idosa; não tanto quanto
ele, mas idosa, de qualquer maneira. Uma mulher ainda bonita que
lhe parecia vagamente conhecida.
O que fazer? A primeira coisa que
lhe ocorreu foi vestir-se e sair de
mansinho para, pelo menos, descobrir que hotel era aquele, e como
viera ter ali, acompanhado; talvez o
homem da portaria pudesse lhe informar a respeito.
Chegou a se levantar, contendo o
gemido habitual, mas aí a mulher
acordou. Olhou-o, sorriu, perguntou
se tinha dormido bem. Então ela me
conhece, pensou, angustiado.
Resolveu usar de franqueza: por
causa da idade, disse, já não lembrava bem as coisas; poderia ela
explicar como estavam ali, os dois,
juntos, naquele quarto, naquela cama? Ela riu, disse que já estava
acostumada com os lapsos de memória dele e explicou:
- É muito simples, querido. Nós
estamos aqui porque ontem casamos. Esta é a nossa lua de mel.
Casados? Então estavam casados? De novo, aquilo era uma revelação espantosa, mas não desagradável: ao contrário, se havia alguma mulher com quem ele gostaria
de ter casado, depois de todos os
anos de viuvez, seria aquela que ali
estava, deitada, a olhá-lo.
Casamos, continuou ela, depois
de um namoro muito rápido. Você
me fez a proposta, eu até achei que
era brincadeira, você disse que estava falando sério, que aquela era
sua última chance de ser feliz.
Então eu disse que sim, e você
preparou tudo, organizou a festa,
pequena mas muito bonita, e depois da festa viemos para cá, para
este hotel que você havia reservado.
E aí tomamos champanhe. Você estava muito alegre, não lembra?
Não, ele não se lembrava de nada. Mas, de fato, gostava de champanhe; talvez tivesse exagerado um
pouco na dose e isso poderia ter
contribuído para a amnésia que
agora o acometia. De qualquer modo, o que estava ouvindo eram boas
notícias, e ele se sentia muito contente de estar casado.
Mas havia ainda uma pergunta
que tinha de fazer, uma pergunta
importantíssima. Hesitou um momento, criou coragem, indagou:
- E nós fizemos... aquilo?
Ela deu uma gargalhada: claro,
querido, fizemos aquilo e devo lhe
dizer que, fazendo aquilo, você foi
absolutamente notável; você disse
que, depois de tantos anos, estava
sem prática, mas você se saiu muito
bem, nota dez.
Agora ele não sabia mais o que
pensar. Era verdade o que ela estava dizendo? Ou tratava-se apenas
de uma mentira piedosa?
Sorriu. Não tinha importância.
Não tinha a menor importância.
Verdade ou mentira, o fato era que ele havia, finalmente, encontrado a mulher de sua vida.
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias
publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br
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