São Paulo, quinta-feira, 09 de setembro de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

"Se no-lo ordenassem as Escrituras"


Com sua capacidade de notar a simbiose, Drummond mostra que o pão da alma (e do coração) está em tudo

NA SEMANA PASSADA, trocamos dois dedos de prosa sobre o trecho inicial da letra do Hino da Independência. Esse hino e a "Semana da Pátria" lembram as Minas Gerais, não? Pois foi lá que passei o feriadão, mais precisamente em Belo Horizonte e Ouro Preto, que está ainda melhor do que quando a vi pela última vez, há dois anos.
Depois de mais de 30 anos, revistei o Museu da Inconfidência, que, após uma bela reforma, transformou-se numa verdadeira joia de nossa história. Lá estão documentos impressionantes, como os autos dos "julgamentos" dos inconfidentes. Infelizmente, só é possível ler a capa desses calhamaços, o que, porém, já basta para que se percebam marcas da grafia e da linguagem da época.
Flexões verbais que há um bom tempo terminam em "am", como "julgam" ou "pegam", aparecem grafadas com "ão" ("julgão" e "pegão"). Também se notam vestígios etimológicos, como as consoantes duplas ("collocar"), o "ph" de "phisica" ou o "sc" de "scientifico".
Não muito longe do museu, encontra-se o Hotel Toffolo, que, ao que parece, de hotel hoje só tem o nome. Na fachada, uma plaquinha de metal informa que ali se hospedaram ilustres figuras da vida brasileira, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
Pois é de Drummond um poema que se chama justamente "Hotel Toffolo". Ei-lo, na íntegra: "E vieram dizer-nos que não havia jantar. / Como se não houvesse outras fomes / e outros alimentos. / Como se a cidade não nos servisse o seu pão / de nuvens. / Não, hoteleiro, nosso repasto é interior / e só pretendemos a mesa. / Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras. / Tudo se come, tudo se comunica, / tudo, no coração, é ceia".
Com sua impressionante capacidade de notar e promover a simbiose (note a profundidade do verso "Tudo se come, tudo se comunica"; note também a ordem das palavras: não foi por acaso que o poeta não escreveu "Come-se tudo, comunica-se tudo"), Drummond deixa claro que o pão do coração (e da alma) está em tudo -e, no caso, na estonteante Ouro Preto, que serve a ele e a seus "comensais" seu "pão de nuvens" (note como o Poeta dividiu os versos nesse trecho).
No poema, há uma passagem linguística que chama a atenção: "Se no-lo ordenassem as Escrituras". Não se trata propriamente de uma construção típica ou exclusiva dos documentos que estão no Museu da Inconfidência, mas... Mas no português brasileiro de hoje é pouco provável que se encontre algo do gênero, o que, diferentemente do que pregam alguns gênios da ultrapós-modernidade linguística, não é motivo para que não se estude ou não se aprenda esse tipo de construção.
A forma "no-lo" resulta da soma de "nos" e "o": o oblíquo "nos" é complemento verbal indireto de "ordenassem" (ordenar a alguém); o demonstrativo "o", equivalente a "isso", representa toda uma oração ("Comeríamos a mesa"). A forma "no-lo" resulta da adaptação fonológica que se dá com a união de "nos" e "o" (suprime-se o "s" de "nos" e acrescenta-se "l" a "o": nos + o = no-lo). Em suma, "Se no-lo ordenassem as Escrituras" = "Se as Escrituras nos ordenassem isso" ("isso" = "Comeríamos a mesa").
O Drummond que escreve "Se no-lo ordenassem" é o mesmo que escreve "Tinha uma pedra no meio do caminho". Como se vê, um dos pães que alimentam o poeta é a língua, da qual ele se serve à vontade, de acordo com o que exigem a circunstância de sua "fome", sua inspiração e/ou transpiração. Guardadas as devidas proporções, isso vale também para todos nós. E viva Ouro Preto! E viva Drummond! É isso.

inculta@uol.com.br


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