São Paulo, sexta-feira, 09 de novembro de 2001

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RÉPLICA

A novela da indicação ao Oscar

WALTER SALLES
COLUNISTA DA FOLHA

O Afeganistão é aqui. Desde a escolha de "Abril Despedaçado" para disputar uma possível indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro, metralhadoras giratórias vêm cuspindo desinformações por todos os lados.
Para que essa guerrinha não fique como a de lá -um choque de simplismos-, ligo a minha Al Jazeera particular para oferecer ao leitor o contraplano, a possibilidade de ouvir o outro lado nessa questão.
A acusação mais comum é a de que "Abril" foi mal recebido pela imprensa no festival de Veneza e, por isso, não merece a indicação. Depende do ângulo e da boa-fé de quem informa: fomos mal recebidos pela imprensa italiana, sim, e muito bem recebidos pela imprensa anglo-saxônica. Alguns exemplos: "O melhor filme que vi nos últimos anos" -Neil Norman, crítico do "London Evening Standard". "Um filme belíssimo." -Tom Charity, crítico da revista "Time Out". David Rooney, crítico da "Variety", talvez o jornal mais influente na indústria norte-americana de cinema, a que vota no Oscar, diz que "Abril Despedaçado" é "um filme lírico e dramático, admiravelmente filmado no Nordeste brasileiro. Os atores vivem seus papéis com intensidade. A direção é soberba".
Conforme a Folha noticiou, o público italiano aplaudiu o filme de pé durante seis minutos. Ainda ganhamos o prêmio do público jovem do festival, o Leoncino d'Oro. Por falar em público: projetado em apenas uma sala em Salvador durante uma semana, "Abril" foi visto por mais de 5.600 pessoas, uma média superior à de "Central do Brasil". O filme também obteve cotação máxima dos críticos dos dois principais jornais da Bahia.
Outra acusação comum é a de que a escolha do filme no Brasil foi feita sob a influência da distribuidora Miramax. Entendo o apelo de marketing da acusação (os fortes contra os fracos, o bem contra o mal), mas cabe a pergunta: que tipo de ingerência pode a Miramax ter sobre um júri de críticos e diretores de cinema brasileiros? Para aqueles que acreditam que tudo é determinado por um pressuposto lobby, é bom lembrar que a Miramax perdeu os dois últimos Oscars de melhor filme estrangeiro para a distribuidora Sony Classics, que venceu com os filmes de Almodóvar ("Tudo Sobre Minha Mãe") e Ang Lee ("O Tigre e o Dragão").
Quanto à comissão brasileira do Oscar: não conheço pessoalmente Helvécio Ratton, embora conheça a integridade do seu trabalho. Também não sou amigo pessoal de Gustavo Dahl, mas acho o seu esforço pela democratização das leis do audiovisual extremamente importante. Sou amigo de Andrucha Waddington, sim, como de tantos outros diretores do cinema brasileiro. Não sou próximo de Luiz Carlos Merten, embora seja seu leitor e aprecie seu olhar. Como a grande maioria dos cineastas brasileiros, admiro a luta de José Carlos Avellar por um cinema brasileiro plural. Espanta-me que pessoas desse nível ético e profissional tenham sido chamadas de "críticos-carneiros" neste mesmo caderno, em texto publicado em 6 de novembro, na pág. C2, com o título "Cinema brasileiro despedaçado".
Diferentemente do que uma revista semanal afirmou, não estamos produzindo projetos de membros da comissão julgadora, e sim, só neste ano, o novo documentário de Eduardo Coutinho ("Edifício Máster"), o novo documentário de Nelson Pereira dos Santos ("Meu Compadre Zé Keti"), o documentário de Sérgio Machado sobre Mário Peixoto ("Onde a Terra Acaba"), o primeiro longa-metragem de Karim Aïnouz ("Madame Satã"), e estamos co-produzindo "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles e Kátia Lund. Projetos que, como se vê, não são exatamente exemplos de cinema comercial -embora alguns desses tenham grande possibilidade de dialogar com o público. Mais importante: são todos filmes que propõem a transformação do Brasil numa sociedade mais aberta e democrática.
Resta a pergunta principal, que deveria ir muito além dos gostos pessoais das torcidas uniformizadas: como escolher um filme de um país para concorrer ao Oscar? Taiwan respondeu a essa pergunta com inteligência no ano passado. "As Coisas Simples da Vida", de Edward Yang, entrou e foi premiado na competição oficial de Cannes, enquanto "O Tigre e o Dragão", de Ang Lee, foi mostrado "hors-concours". Na hora de escolher o filme para o Oscar, Taiwan optou por "O Tigre e o Dragão". E ganhou. Qual dos dois era o melhor filme? Depende do ponto de vista. O crítico da revista "Time" apontou "O Tigre e o Dragão" como melhor filme do ano. Já a imprensa européia preferiu "As Coisas Simples da Vida". O fato é que os dois filmes tinham inúmeras qualidades. Mas é inegável que "As Coisas Simples da Vida" tinha o perfil ideal para Cannes e "O Tigre e o Dragão", para o Oscar. Por sorte, existem dezenas de festivais e competições em que filmes diferentes podem se exprimir de forma adequada.
O que está em jogo, neste momento, é justamente a não-aceitação de um cinema brasileiro diversificado, com vertentes plurais. Numa ação entre amigos, tenta-se dividir o mundo em dois campos, os fiéis e os infiéis. Já se ouviu esse discurso antes na televisão: você só pode estar a favor ou contra. É a mesma visão redutora que tentam impor agora, aqui.




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