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RÉPLICA
A novela da indicação ao Oscar
WALTER SALLES
COLUNISTA DA FOLHA
O Afeganistão é aqui.
Desde a escolha de "Abril
Despedaçado" para disputar
uma possível indicação para o
Oscar de melhor filme estrangeiro, metralhadoras giratórias vêm
cuspindo desinformações por todos os lados.
Para que essa guerrinha não fique como a de lá -um choque de
simplismos-, ligo a minha Al Jazeera particular para oferecer ao
leitor o contraplano, a possibilidade de ouvir o outro lado nessa
questão.
A acusação mais comum é a de
que "Abril" foi mal recebido pela
imprensa no festival de Veneza e,
por isso, não merece a indicação.
Depende do ângulo e da boa-fé de
quem informa: fomos mal recebidos pela imprensa italiana, sim, e
muito bem recebidos pela imprensa anglo-saxônica. Alguns
exemplos: "O melhor filme que vi
nos últimos anos" -Neil Norman, crítico do "London Evening
Standard". "Um filme belíssimo."
-Tom Charity, crítico da revista
"Time Out". David Rooney, crítico da "Variety", talvez o jornal
mais influente na indústria norte-americana de cinema, a que
vota no Oscar, diz que "Abril Despedaçado" é "um filme lírico e
dramático, admiravelmente filmado no Nordeste brasileiro. Os
atores vivem seus papéis com intensidade. A direção é soberba".
Conforme a Folha noticiou, o
público italiano aplaudiu o filme
de pé durante seis minutos. Ainda
ganhamos o prêmio do público
jovem do festival, o Leoncino d'Oro. Por falar em público: projetado em apenas uma sala em Salvador durante uma semana,
"Abril" foi visto por mais de 5.600
pessoas, uma média superior à de
"Central do Brasil". O filme também obteve cotação máxima dos
críticos dos dois principais jornais
da Bahia.
Outra acusação comum é a de
que a escolha do filme no Brasil
foi feita sob a influência da distribuidora Miramax. Entendo o
apelo de marketing da acusação
(os fortes contra os fracos, o bem
contra o mal), mas cabe a pergunta: que tipo de ingerência pode a
Miramax ter sobre um júri de críticos e diretores de cinema brasileiros? Para aqueles que acreditam que tudo é determinado por
um pressuposto lobby, é bom lembrar que a Miramax perdeu os
dois últimos Oscars de melhor filme estrangeiro para a distribuidora Sony Classics, que venceu
com os filmes de Almodóvar
("Tudo Sobre Minha Mãe") e Ang
Lee ("O Tigre e o Dragão").
Quanto à comissão brasileira
do Oscar: não conheço pessoalmente Helvécio Ratton, embora
conheça a integridade do seu trabalho. Também não sou amigo
pessoal de Gustavo Dahl, mas
acho o seu esforço pela democratização das leis do audiovisual
extremamente importante. Sou
amigo de Andrucha Waddington,
sim, como de tantos outros diretores do cinema brasileiro. Não sou
próximo de Luiz Carlos Merten,
embora seja seu leitor e aprecie
seu olhar. Como a grande maioria dos cineastas brasileiros, admiro a luta de José Carlos Avellar
por um cinema brasileiro plural.
Espanta-me que pessoas desse nível ético e profissional tenham sido chamadas de "críticos-carneiros" neste mesmo caderno, em
texto publicado em 6 de novembro, na pág. C2, com o título "Cinema brasileiro despedaçado".
Diferentemente do que uma revista semanal afirmou, não estamos produzindo projetos de
membros da comissão julgadora,
e sim, só neste ano, o novo documentário de Eduardo Coutinho
("Edifício Máster"), o novo documentário de Nelson Pereira dos
Santos ("Meu Compadre Zé Keti"), o documentário de Sérgio
Machado sobre Mário Peixoto
("Onde a Terra Acaba"), o primeiro longa-metragem de Karim
Aïnouz ("Madame Satã"), e estamos co-produzindo "Cidade de
Deus", de Fernando Meirelles e
Kátia Lund. Projetos que, como se
vê, não são exatamente exemplos
de cinema comercial -embora
alguns desses tenham grande possibilidade de dialogar com o público. Mais importante: são todos
filmes que propõem a transformação do Brasil numa sociedade
mais aberta e democrática.
Resta a pergunta principal, que
deveria ir muito além dos gostos
pessoais das torcidas uniformizadas: como escolher um filme de
um país para concorrer ao Oscar?
Taiwan respondeu a essa pergunta com inteligência no ano passado. "As Coisas Simples da Vida",
de Edward Yang, entrou e foi premiado na competição oficial de
Cannes, enquanto "O Tigre e o
Dragão", de Ang Lee, foi mostrado "hors-concours". Na hora de
escolher o filme para o Oscar, Taiwan optou por "O Tigre e o Dragão". E ganhou. Qual dos dois era
o melhor filme? Depende do ponto de vista. O crítico da revista
"Time" apontou "O Tigre e o Dragão" como melhor filme do ano.
Já a imprensa européia preferiu
"As Coisas Simples da Vida". O
fato é que os dois filmes tinham
inúmeras qualidades. Mas é inegável que "As Coisas Simples da
Vida" tinha o perfil ideal para
Cannes e "O Tigre e o Dragão",
para o Oscar. Por sorte, existem
dezenas de festivais e competições
em que filmes diferentes podem se
exprimir de forma adequada.
O que está em jogo, neste momento, é justamente a não-aceitação de um cinema brasileiro diversificado, com vertentes plurais.
Numa ação entre amigos, tenta-se dividir o mundo em dois campos, os fiéis e os infiéis. Já se ouviu
esse discurso antes na televisão:
você só pode estar a favor ou contra. É a mesma visão redutora
que tentam impor agora, aqui.
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