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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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Policial tem de esconder sua profissão

DA REPORTAGEM LOCAL

Quando entrou para a Polícia Militar, em janeiro de 1987, o cabo Roberto (seu verdadeiro nome não é este) seguia o chamado do sangue. "Sou filho de policial, tenho três irmãos policiais, não saberia fazer outra coisa", disse ele à Folha na noite de sexta-feira.
Não imaginou que, 16 anos depois, ele teria de esconder do mundo a sua profissão.
Hoje, aos 36, cabo Roberto conta com pesar sua rotina, que começa às 5h da manhã de uma segunda-feira, quando acorda em sua casa, numa das cidades da Grande São Paulo.
Depois de se barbear, ele prepara a mochila indispensável.
Antes, ele saía fardado para o trabalho, exibindo com orgulho pelas ruas do seu bairro a condição de soldado da Polícia Militar. De quebra, não pagava a passagem do ônibus.
Hoje, dobra a farda, enfia no fundo da mochila e cobre com objetos. "O maior perigo é a bandidagem saber que você é policial", revela. "Não vale a economia."
Por garantia, carrega o revólver sob a blusa, camuflado. Mesmo a identidade funcional vai escondida na carteira, ensanduichada entre dois documentos neutros.
"A maioria dos meus colegas andava com o holerite. Agora, ninguém faz isso." O receio é sofrer uma blitz ao contrário: ser parado por bandidos na ida ou na volta da rota de casa.
Assim, quase escondido, o policial anda em direção ao ponto de ônibus -a maioria dos soldados recebe um salário de R$ 1.150, que pode ser dobrado com o chamado "bico", o segundo emprego, como é o caso do cabo Roberto.
Deixa para trás a mulher -que o levou até a porta, como sempre, e pediu o de sempre: "Volte vivo"- e três filhos.
O caçula ainda conta para os amiguinhos na escola que o pai é policial militar; as meninas, mais velhas, uma delas pré-adolescente, não. Já sabem do perigo.
Na vizinhança, só os mais chegados conhecem a profissão de Roberto. Sua rua termina em uma favela, e os traficantes que dominam um pedaço dela não gostariam de saber da proximidade. "Mesmo assim, vira e mexe alguém vem me pedir para interceder em alguma confusão", conta.
Da última vez que chamaram por ele, convenceu um marido bêbado a parar de bater na mulher e desistir da idéia de colocar fogo na casa -só na conversa, sem mostrar o distintivo nem a arma, muito menos a farda.
Um dos receios mais frequentes dos soldados é a vingança. "Todos os dias, eu prendo muita gente e não me lembro do rosto de 99%", contabiliza o policial. "Só que cada um que prendi sabe muito bem o meu e pode querer troco."

Jornada de 24 horas
No quartel, o dia começa às 7h e vai durar 12 horas, durante as quais cabo Roberto sairá com um colega de carro para fazer patrulha e atender ocorrências. Para tanto, recebe um revólver calibre 38 e um colete à prova de bala.
Cabo Roberto nunca foi atingido, mas já acertou pessoas num tiroteio. Dois morreram. "Não sei quem matou quem, pois havia mais soldados. Quando é determinada a legítima defesa, não se verifica a autoria dos disparos, todas as armas são apreendidas."
Vencidas as 12 horas, encara outras 12 no bico, emendando 24 horas acordado. No dia seguinte, terá folga na PM, mas não no segundo emprego; aproveitará então para dormir um pouco pela manhã e à tarde. "É meu único lazer, dormir", conta, "um pouco mais nos finais de semana."
Até as 5h da próxima segunda, quando começa tudo de novo.
(SÉRGIO DÁVILA)


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