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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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SP 450

Malconservados, conjuntos de casas, ao lado de fábricas, são lembranças de uma cidade que começava a crescer

Vilas de SP revelam história de trabalhadores

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

São 11h de um dia ensolarado.
O menino Raul Volpe Motta, oito anos, acaba de voltar de uma manhã típica em sua vida. Mergulhou no rio, passeou de barco, roubou goiabas da chacrinha de um vizinho, um bravo juiz de menores, na margem oposta. Agora, volta para casa segurando uma vareta em que jazem, amarrados pela boca, lambaris e tilápias.
Caminha pelas ruas de pedras que bem conhece. São cinco vias, cortadas por quatro travessas, numa comunidade de 178 casas. Ele mora no número 23 da rua 2 (todas têm nomes, mas os habitantes continuam chamando pelos números). Seu pai trabalha na fábrica ao lado e se mudou para a vila com a mulher e os três filhos.
Raul estuda na Escola dos Meninos, é examinado periodicamente pelo ambulatório local, faz compras com caderneta no armazém, janta com os pais no restaurante no segundo andar do prédio principal nos sábados e, aos domingos, frequenta a capela São José do Belém. Tudo sem sair da vila.
Estamos em 1933. A cidade é São Paulo, o rio é o Tietê, a vila é a Maria Zélia, de operários, e o bairro é o Belenzinho, na zona leste, a pouco mais de 15 minutos da praça da Sé. "Era uma delícia."
Quem conta a história é o próprio Raul, hoje com 79 anos, há 71 morando na mesma casa, há 40 com a mulher, Maria Gilda, 69. O cenário, porém, mudou muito. Para pior.
Hoje, a cidade cresceu. Entre a vila e o rio há as marginais, congestionadas e barulhentas. O próprio rio faz tempo deixou de sê-lo. O terreno do fundo, que separa as casas da rua externa, está sendo disputado entre a associação dos moradores, que ali ergueu um centro de lazer e uma sede, e a Prefeitura de São Paulo, que reclama o pedaço de volta.
Mas o principal é a situação geral da vila. A maioria das casas foi desfigurada; muitas ganharam um segundo andar inexistente na planta original. A Escola dos Meninos e a das Meninas têm pouco tempo antes de desabar de vez.
A Vila Maria Zélia, construída no início do século passado pelo industrial Jorge Street (1863-1939) ao lado de sua fábrica de tecidos, é um símbolo do descaso com que a cidade, às vésperas de seus 450 anos, vem tratando suas históricas vilas operárias, principalmente as que já foram tombadas.
É o caso da Vila Economizadora, na Luz (centro), que assiste calada à sua deterioração. Da mesma maneira estão também outras, como a Vila Itororó, construída no começo do século passado na Liberdade, que trazia a primeira casa de São Paulo a ter piscina -hoje um cortiço. A exceção é a Vila dos Ingleses, na Luz, que subsiste inalterada pela mão forte de seu proprietário e pelo fato de ter virado centro comercial.
São Paulo teve em seu auge pelo menos 40 vilas operárias, segundo Telma de Barros Correia, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da USP-São Carlos e autora de pesquisa sobre esse tipo de construção. "Algumas continuam existindo, outras tiveram as casas modificadas, muitas foram destruídas."
O motivo, segundo o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), órgão municipal que responde pelos bens tombados em São Paulo, é o de sempre: falta de gente e recursos. "O órgão que tomba não é obrigado a restaurar", diz a arquiteta Antônia Luz, do Departamento de Crítica e Tombamento da entidade.
A responsabilidade, diz, é dos proprietários, que devem aproveitar as isenções fiscais e procurar parcerias com a iniciativa privada para conservar os imóveis.
Há anos a Sociedade Amigos da Maria Zélia tenta convencer o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), hoje dono dos seus prédios históricos, a restaurar as edificações ou doá-las para quem aceitar a empreitada. O órgão diz que espera avaliação de viabilidade de técnicos para então decidir o que fazer -provavelmente repassar tudo à prefeitura.

Formação da cidade
As vilas operárias surgiram no fim do século 19, começo do 20, nas grandes cidades do mundo novo que começavam seu processo tardio de industrialização, como Buenos Aires e Cidade do México. Em São Paulo, surgiam geralmente ao lado de uma fábrica e abrigava imigrantes, principalmente italianos.
"Na formação da cidade, elas são fragmentos que narram a odisséia dos personagens menos privilegiados na industrialização e, ao mesmo tempo, os mais importantes", diz Hugo Segawa, autor de "Prelúdio da Metrópole". Para ele, tal moradia é capítulo especial da urbanização paulistana.
"Só que seu contorno nem sempre é nítido", diz. Assim, há bairros operários que se formaram não necessariamente como resultado da ação de industriais; há aglomerados e cortiços que surgiram com a pobreza e que quase não deixaram vestígios; e há as vilas operárias. Uma delas, Maria Zélia, continua sua briga pela sobrevivência. Se depender de Raul Volpe Motta, a briga vai ser boa.



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