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MOACYR SCLIAR
Os usos da insônia
Promoção feita por shopping vai
premiar quem ficar mais tempo sem
dormir. O vencedor ganhará um
colchão. Cotidiano, 5.fev.2003
Durante anos ele sofreu
de insônia. Tentou de tudo,
experimentou todos os remédios,
seguiu todas as recomendações,
desde as mais comuns -contou
rebanhos inteiros de carneirinhos- até as mais exóticas, que
incluíam estranhas técnicas
orientais. Nada. Simplesmente
não conseguia dormir. Passava
noites e noites acordado. O que
dava inveja a alguns amigos. Ah,
suspirava um deles, se eu tivesse
insônia, quantas coisas não faria, trabalharia, leria muito
mais, escreveria... Mas ele sabia
que não era assim. Não havia nada que preenchesse as horas da
noite, nada. Ler era coisa de que
não gostava; os filmes da TV o
aborreciam, e bem assim os programas de rádio. Numa época,
resolveu sair para caminhar. Desistiu depois do segundo assalto.
Enfim, passava o tempo amargurado. Por que Deus tinha de me
castigar dessa maneira, perguntava-se.
Pensou ter encontrado a resposta quando viu no jornal o
anúncio da promoção do shopping: quem ficasse mais tempo
sem dormir ganharia um colchão. Pela primeira vez, a sua insônia representaria uma vantagem, não um transtorno. O prêmio não lhe interessava muito
-de que lhe adiantaria um colchão, mesmo caro, se não dormia?- mas a simples possibilidade de responder à altura a um
destino cruel já lhe satisfazia.
Foi correndo se inscrever. O encarregado disse que o número de
candidatos superava o número
de vagas, mas ele tanto insistiu
que o rapaz ficou com pena e decidiu aceitá-lo.
Chegou o grande dia. No recinto do shopping destinado para a
prova, uma espécie de "reality
show", reuniram-se os concorrentes. Jovens, em sua maioria.
Ele olhou-os, um a um, e sorriu,
satisfeito. Os insones se conhecem, e ali, disso estava seguro,
não havia ninguém com dificuldade para dormir. Aposto que
em algumas horas estarão todos
ferrados no sono, pensou.
O juiz deu por iniciada a competição. Ele sentou na cadeira
que lhe fora destinada e dispôs-se
a esperar horas, dias, semanas,
até pelo momento de ser proclamado vencedor.
E aí aconteceu.
Um sono invencível apossou-se
dele. Um sono como não sentia
desde a infância, talvez. E que de
imediato o deixou alarmado e
enfurecido. Agora, vinha o sono?
Agora, que não precisava dele?
Agora, que era inimigo? Que sacanagem era aquela?
Não pôde encontrar resposta
para esta pergunta. Adormeceu
tão profundamente que nem
acordou quando os funcionários
da empresa, rindo, o removeram
do local. A esposa levou-o, de táxi, para casa, ajudou-o a deitar-se.
Nesse momento, ele abriu os
olhos. Ali estava ela de novo, a
velha companheira, a insônia.
Que só abandonara por um curto
espaço de tempo. O tempo suficiente para humilhá-lo, para
mostrar-lhe quem, afinal, mandava.
Com um fundo suspiro, ele se
levantou e foi preparar um copo
de leite morno. Recomendação
de um tio, que já experimentara
mil vezes, sem resultado. Mas
tentar é uma coisa que nem a insônia proíbe.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto
de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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