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São Paulo, segunda-feira, 10 de fevereiro de 2003

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MOACYR SCLIAR

Os usos da insônia

Promoção feita por shopping vai premiar quem ficar mais tempo sem dormir. O vencedor ganhará um colchão. Cotidiano, 5.fev.2003

Durante anos ele sofreu de insônia. Tentou de tudo, experimentou todos os remédios, seguiu todas as recomendações, desde as mais comuns -contou rebanhos inteiros de carneirinhos- até as mais exóticas, que incluíam estranhas técnicas orientais. Nada. Simplesmente não conseguia dormir. Passava noites e noites acordado. O que dava inveja a alguns amigos. Ah, suspirava um deles, se eu tivesse insônia, quantas coisas não faria, trabalharia, leria muito mais, escreveria... Mas ele sabia que não era assim. Não havia nada que preenchesse as horas da noite, nada. Ler era coisa de que não gostava; os filmes da TV o aborreciam, e bem assim os programas de rádio. Numa época, resolveu sair para caminhar. Desistiu depois do segundo assalto. Enfim, passava o tempo amargurado. Por que Deus tinha de me castigar dessa maneira, perguntava-se.
Pensou ter encontrado a resposta quando viu no jornal o anúncio da promoção do shopping: quem ficasse mais tempo sem dormir ganharia um colchão. Pela primeira vez, a sua insônia representaria uma vantagem, não um transtorno. O prêmio não lhe interessava muito -de que lhe adiantaria um colchão, mesmo caro, se não dormia?- mas a simples possibilidade de responder à altura a um destino cruel já lhe satisfazia.
Foi correndo se inscrever. O encarregado disse que o número de candidatos superava o número de vagas, mas ele tanto insistiu que o rapaz ficou com pena e decidiu aceitá-lo.
Chegou o grande dia. No recinto do shopping destinado para a prova, uma espécie de "reality show", reuniram-se os concorrentes. Jovens, em sua maioria. Ele olhou-os, um a um, e sorriu, satisfeito. Os insones se conhecem, e ali, disso estava seguro, não havia ninguém com dificuldade para dormir. Aposto que em algumas horas estarão todos ferrados no sono, pensou.
O juiz deu por iniciada a competição. Ele sentou na cadeira que lhe fora destinada e dispôs-se a esperar horas, dias, semanas, até pelo momento de ser proclamado vencedor.
E aí aconteceu.
Um sono invencível apossou-se dele. Um sono como não sentia desde a infância, talvez. E que de imediato o deixou alarmado e enfurecido. Agora, vinha o sono? Agora, que não precisava dele? Agora, que era inimigo? Que sacanagem era aquela?
Não pôde encontrar resposta para esta pergunta. Adormeceu tão profundamente que nem acordou quando os funcionários da empresa, rindo, o removeram do local. A esposa levou-o, de táxi, para casa, ajudou-o a deitar-se.
Nesse momento, ele abriu os olhos. Ali estava ela de novo, a velha companheira, a insônia. Que só abandonara por um curto espaço de tempo. O tempo suficiente para humilhá-lo, para mostrar-lhe quem, afinal, mandava.
Com um fundo suspiro, ele se levantou e foi preparar um copo de leite morno. Recomendação de um tio, que já experimentara mil vezes, sem resultado. Mas tentar é uma coisa que nem a insônia proíbe.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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