São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Não sei mais o que faça..."

Quando se vai ao dicionário (de papel ou eletrônico), a pressa é -mais do que nunca- inimiga da perfeição

NA DELICADA "Não Tem Solução" (composta por Dorival Caymmi e Carlos Guinle), encontra-se esta passagem: "E eu, que esperava nunca mais amar, não sei mais o que faça com esse amor...".
A doce canção me veio à mente depois que muitos leitores se manifestaram sobre o texto da semana passada, em que abordei uma questão da UFSCar, cuja resposta continha o passo "Uma vez que ele ganhe...". Alguns desses leitores, que afirmaram que nunca viram o presente do subjuntivo assim empregado, chegaram até a questionar a sua legitimidade.
De fato, esse uso do subjuntivo com a locução "uma vez que" não é muito comum, mas não pode ser dado como raro ou raríssimo (sua incidência é maior na língua escrita do que na falada). Esse emprego é confirmado pelo "Houaiss" e pelo "Aurélio", que, no verbete "vez", registram a locução com seus dois valores (causal e condicional, exemplificados respectivamente com o verbo no indicativo e no subjuntivo). Na canção de Caymmi e Guinle, o emprego de "faça" (do modo subjuntivo) tem matiz bem interessante. Troque "faça" por "faço" ("Não sei mais o que faço..."). Percebeu?
Com o emprego de "faço" (do modo indicativo), o ato de fazer pode ter matiz mais real ("Não sei mais o que faço" = "Não tenho mais noção do que faço"). Quando se usa "faça", o ato de fazer é posto no plano da hipótese, da dúvida, da suposição ("Não sei mais o que faça" = "Não sei mais o que posso/é possível fazer").
Posto isso, quero aproveitar o episódio do emprego do modo subjuntivo com a expressão "uma vez que" para um comentário que me parece importante: como localizar certas informações nos dicionários? Como saber, por exemplo, quando se escreve "dia-a-dia" e quando se escreve "dia a dia" ou como se flexiona o verbo com certas expressões, como no caso de "uma vez que"?
Para que se encontre (ou não) o composto "dia-a-dia" (com dois hífenes -trata-se da substantivação da expressão "dia a dia"), basta ir à letra "d" e verificar se existe registro.
Se houver, pronto! Um a zero. Como a expressão de fato tem registro, vamos ao que se encontra: "A sucessão dos dias; o viver cotidiano, o labor de todos os dias" ("Aurélio"). As definições do "Houaiss" são bem parecidas (uma diferente é "a rotina").
E onde se encontra então a expressão "dia a dia"? No verbete "dia". Depois de explicarem os diversos sentidos e usos da palavra "dia", os dicionários dão algumas das tantas expressões da língua de que esse substantivo faz parte ("dia cheio", "dia D", "dia de São Nunca", "dia aziago" etc.). Uma dessas expressões é "dia a dia", que tem valor adverbial e significa "cotidianamente", "com o correr dos dias", "dia após dia" ("Ela melhora dia a dia").
Não posso deixar de lembrar que, no caso de uma ida ao dicionário, a pressa -mais do que nunca- é inimiga da perfeição. Quem simplesmente fecha o tijolão ou a página eletrônica assim que encontra "dia-a-dia" corre o risco de meter os pés pelas mãos, ou seja, pode concluir que sempre se usa essa forma.
No caso de "à-toa" e "à toa", o processo se repete. Vai-se à letra "a" e se encontra "à-toa" (de valor adjetivo -significa "desprezível", "vil" etc.).
A expressão "à toa" (de valor adverbial -significa "a esmo", "ao acaso") se encontra no verbete "toa". É isso.


inculta@uol.com.br

Texto Anterior: CET atribui problema a mudança em lista
Próximo Texto: Trânsito: Jogo no Morumbi deve mudar tráfego no entorno do estádio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.