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PASQUALE CIPRO NETO
"O corpo do ex-presidente embarcou..."
Acabo de ouvir no rádio:
"O corpo do ex-presidente
norte-americano Ronald Reagan
embarcou hoje para...".
Sabemos todos que os Estados
Unidos se julgam donos do mundo, todo-poderosos etc., etc., mas
defunto presidencial americano
embarcar é meio forçado, não?
Na verdade, meio forçado é o
que anda fazendo o pessoal do
jornalismo radiofônico, que tem
abusado da "criatividade". Logo
depois que ouvi a notícia sobre o
corpo de Reagan, passei para outra emissora e ouvi isto: "Entram
em vigor amanhã as regras de vôo
para o sobrevôo dos helicópteros...". Ai, ai. É dura a vida.
É bom dizer que nenhum dos
textos foi dito por repórteres que
estivessem na rua. Os textos foram lidos no estúdio, ou seja, foram redigidos e depois lidos. Pelo
jeito, o pessoal anda com muita
pressa ou com pouco-caso em relação à imprescindível releitura.
Voltemos ao corpo de Reagan,
que "embarcou". Um belo dia,
aprendemos na escola a passar da
voz ativa para a passiva. Lembra
o que é isso? Vejamos um exemplo banal: "O Brasil derrotou a
Argentina" (voz ativa) se transforma em "A Argentina foi derrotada pelo Brasil" (voz passiva).
Grosso modo, pode-se dizer que,
na voz ativa, o sujeito (o Brasil) é
agente, ou seja, executa o processo expresso pelo verbo; na voz
passiva, o sujeito (a Argentina) é
paciente, ou seja, é o alvo do processo expresso pelo verbo.
Parece-lhe cabível, caro leitor,
que um corpo embarque, isto é,
que seja agente do processo expresso pelo verbo "embarcar"?
Certamente é mais aconselhável
empregar a voz passiva: "Corpo
do ex-presidente Reagan é embarcado ("levado", "transportado", "conduzido" etc.) para...".
Que muda na passagem da voz
ativa para a passiva (além da forma, é claro)? Muda essencialmente o que se põe em evidência.
Quando se diz "Os Estados Unidos invadiram o Iraque", coloca-se em evidência o agente do processo expresso pelo verbo (os Estados Unidos); quando se diz "O
Iraque foi invadido pelos Estados
Unidos", coloca-se em evidência o
alvo, o paciente (o Iraque).
Os redatores de "O corpo do ex-presidente (...) embarcou para..."
provavelmente tenham querido
seguir à risca uma velha "regra"
do texto jornalístico, a de privilegiar a ordem direta (sujeito, verbo etc.). Esqueceram-se de que
certos sujeitos gramaticais, embora possam iniciar orações, não
podem ter o papel de agente.
Por falar em "embarcar", convém lembrar que essa palavra resulta de "em-" + "barca" + "-ar".
Ocorre aí um processo chamado
"derivação parassintética" (aglutinação simultânea de prefixo e
sufixo), o que ocorre também em
verbos como "acalmar" ("a-" +
"calmo" + "-ar"), "empobrecer"
("em-" + "pobre" + "-ecer") "esfriar" ("es-" + "frio" + "-ar") etc.
Convém lembrar também que,
quando se diz "embarcar no
trem" (ou no navio, no avião, no
ônibus, no carro), emprega-se
uma figura chamada "catacrese",
palavrão de origem grega que o
"Aurélio" define como "aplicação
de um termo figurado por falta de
termo próprio". O céu da boca, as
pernas da mesa e o bico do bule
são belos exemplos de catacrese.
Em outras palavras, como não
temos um verbo específico para
cada meio de transporte, valemo-nos metaforicamente de "embarcar". E embarcamos -no trem,
no navio e até em barcas furadas.
Mas essa é outra figura. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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