São Paulo, quinta-feira, 10 de junho de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"O corpo do ex-presidente embarcou..."

Acabo de ouvir no rádio: "O corpo do ex-presidente norte-americano Ronald Reagan embarcou hoje para...".
Sabemos todos que os Estados Unidos se julgam donos do mundo, todo-poderosos etc., etc., mas defunto presidencial americano embarcar é meio forçado, não?
Na verdade, meio forçado é o que anda fazendo o pessoal do jornalismo radiofônico, que tem abusado da "criatividade". Logo depois que ouvi a notícia sobre o corpo de Reagan, passei para outra emissora e ouvi isto: "Entram em vigor amanhã as regras de vôo para o sobrevôo dos helicópteros...". Ai, ai. É dura a vida.
É bom dizer que nenhum dos textos foi dito por repórteres que estivessem na rua. Os textos foram lidos no estúdio, ou seja, foram redigidos e depois lidos. Pelo jeito, o pessoal anda com muita pressa ou com pouco-caso em relação à imprescindível releitura.
Voltemos ao corpo de Reagan, que "embarcou". Um belo dia, aprendemos na escola a passar da voz ativa para a passiva. Lembra o que é isso? Vejamos um exemplo banal: "O Brasil derrotou a Argentina" (voz ativa) se transforma em "A Argentina foi derrotada pelo Brasil" (voz passiva).
Grosso modo, pode-se dizer que, na voz ativa, o sujeito (o Brasil) é agente, ou seja, executa o processo expresso pelo verbo; na voz passiva, o sujeito (a Argentina) é paciente, ou seja, é o alvo do processo expresso pelo verbo.
Parece-lhe cabível, caro leitor, que um corpo embarque, isto é, que seja agente do processo expresso pelo verbo "embarcar"? Certamente é mais aconselhável empregar a voz passiva: "Corpo do ex-presidente Reagan é embarcado ("levado", "transportado", "conduzido" etc.) para...".
Que muda na passagem da voz ativa para a passiva (além da forma, é claro)? Muda essencialmente o que se põe em evidência. Quando se diz "Os Estados Unidos invadiram o Iraque", coloca-se em evidência o agente do processo expresso pelo verbo (os Estados Unidos); quando se diz "O Iraque foi invadido pelos Estados Unidos", coloca-se em evidência o alvo, o paciente (o Iraque).
Os redatores de "O corpo do ex-presidente (...) embarcou para..." provavelmente tenham querido seguir à risca uma velha "regra" do texto jornalístico, a de privilegiar a ordem direta (sujeito, verbo etc.). Esqueceram-se de que certos sujeitos gramaticais, embora possam iniciar orações, não podem ter o papel de agente.
Por falar em "embarcar", convém lembrar que essa palavra resulta de "em-" + "barca" + "-ar". Ocorre aí um processo chamado "derivação parassintética" (aglutinação simultânea de prefixo e sufixo), o que ocorre também em verbos como "acalmar" ("a-" + "calmo" + "-ar"), "empobrecer" ("em-" + "pobre" + "-ecer") "esfriar" ("es-" + "frio" + "-ar") etc.
Convém lembrar também que, quando se diz "embarcar no trem" (ou no navio, no avião, no ônibus, no carro), emprega-se uma figura chamada "catacrese", palavrão de origem grega que o "Aurélio" define como "aplicação de um termo figurado por falta de termo próprio". O céu da boca, as pernas da mesa e o bico do bule são belos exemplos de catacrese.
Em outras palavras, como não temos um verbo específico para cada meio de transporte, valemo-nos metaforicamente de "embarcar". E embarcamos -no trem, no navio e até em barcas furadas. Mas essa é outra figura. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail - inculta@uol.com.br


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