São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007

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"Cinderela do lixão" não virou princesa

Descoberta pela atriz Giovanna Antonelli em 2004, a ex-catadora Cristiane de Andrade ouviu promessas para virar top

Passada a fama-relâmpago, ela diz que mal tinha o que comer e que foi cobaia de "reality show", mas se reergueu como garçonete

DANIEL BERGAMASCO
DA REPORTAGEM LOCAL

Nem Eli Hadid, dono da agência Mega Models, que contratou a ex-catadora Cristiane de Andrade depois que ela foi descoberta em um lixão de Bangu, no Rio, sabe ao certo o final desse conto de fadas.
"Ah, sim, a Cristiane, do lixão! Lembro-me dela. Lembro que ela acabou saindo da agência, mas não lembro direito o porquê. Acho que ela não tinha muita força de vontade", diz Eli. "Cadê ela?"
Cristiane, 26, não se esquece de nada. De quando era catadora do lixão e foi descoberta pela atriz Giovanna Antonelli durante uma gravação em 2004 da novela "Da Cor do Pecado", que está sendo reprisada agora. De quando brilhou no "Fantástico", da TV Globo, e no "Domingo Legal", do SBT. De quando trocou seu barraco em uma favela de Bangu por um flat "muito chique" em São Paulo, pago pela agência Mega. E de quando tudo isso virou pó.
"Eu tive aqueles minutinhos de fama, de aparecer em TV e em revistas como a modelo que veio do lixão. Era época do Fashion Rio e cheguei a desfilar para o Walter Rodrigues."
"Na frente da TV, me prometiam tudo, contratos para ganhar R$ 2.000. Depois desconversavam. Dinheiro, que é bom, nunca vinha", diz. "Era muita bajulação e pouca grana. No começo, eu ganhava uns R$ 200 aqui, uns R$ 300 ali. Depois passava um tempão sem trabalho. Tinha onde morar, mas não tinha salário. Estava comendo pior do que em Bangu. Foi quando decidi largar tudo."
Mas não voltar à favela. Depois de comer o pão que o mundinho fashion amassou na promessa de se tornar "uma grande modelo", Cristiane conseguiu emprego como garçonete no bar cubano Azucar, no Itaim, onde trabalha até hoje.
Deixou de lado o sonho de princesa para não virar abóbora. "Fui à luta e estou feliz demais! Moro numa casinha boa, de um quarto, em Santo Amaro. E ganho muito mais aqui do que como modelo." Uma garçonete no bairro do Itaim chega a ganhar R$ 2.000 por mês.
"Ela virou garçonete? Fico feliz em saber. Ela veio do lixão, acho que progrediu muito", diz Eli Hadid.

Gorda
Alta (1,80 m), com 58 quilos quando chegou a São Paulo, Cristiane diz que "era considerada gorda para alguns trabalhos". "Às vezes não chegavam a olhar para o rosto. A pessoa olhava da cintura para baixo. A mais ossuda é a que ia."
"Todo mundo fala que eu sou um varapau. Mas, para o mundo da moda, eu sou gorda."
Preocupada com a forma, ela chegou a ser cobaia de um "reality show" de produtora independente que nunca foi ao ar. Lipoaspirou a barriga e as pernas e colocou 400 ml de silicone em cada seio. Cachê? Nada. "Mas adorei operar de graça."
Na agência, o cotidiano era angustiante, diz ela. "O que a Mega fez comigo não é porque eu era do lixão. Faziam também com outras modelos que não vieram de mídia." Faziam o quê? "De não ligar, deixar ali sentada no tão famoso sofá da Mega o dia inteiro. Tem a mesa dos "bookers" [agentes] num canto e as modelos ficam ali no sofá, penando o dia inteiro, com fome, esperando um casting [seleção para um trabalho]."
Veterana bem sucedida, a top Letícia Birkheuer diz que o sofrimento faz parte da carreira. "A maioria das meninas não consegue nada mesmo. É muito cruel. Mas a vida é difícil em qualquer profissão."
O contato de Cristiane com a fada madrinha global continuou. "Ela foi um anjo", diz a garçonete, que não tem o número de celular, mas sabe o e-mail de Giovanna Antonelli.
Depois de três meses no flat, Cristiane foi instalada em uma república de modelos. Diz que tinha fome. Mas não tinha dinheiro. Então vivia de macarrão e jujubas. "Em Bangu eu tinha minha carninha de vez em quando. Aqui eu ia direto pro Miojo, pra gastar menos."
Não que a vida no lixo fosse fácil. Seu corpo era marcado por cacos de vidro e pedaços de ferro em que esbarrava na montanha de restos. Um dia, achou dois fetos abortados em um pote. Era vida dura, mas que em matéria de cenas deprimentes não deixava a desejar aos bastidores da moda.
"Conheci meninas que cheiravam [cocaína] para emagrecer", diz. "Vi muitas estragarem a vida. E também meninas lindas gastarem o dinheiro que juntaram para a faculdade para se manter em São Paulo e depois voltar para casa sem nada."
Os prós, os contras, e ela acha que valeu a pena. "Eu ganhava R$ 400 catando lixo e hoje melhorei muito minha vida. Muito "booker" apostava que eu ia voltar pro lixão. Alguns catadores de lá também falavam isso."
Cristiane diz que acha "lindo desfilar". "Tenho vontade de continuar, mas peguei medo de agência. A imagem que eu tenho do mundo da moda é de muita mentira. A palavra não vale muita coisa."


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