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ANÁLISE
Felicidade vai-se embora
Quando eu falo da minha felicidade, falo de esperança e de futuro; quando eu falo dos outros, idealizo menos
ANNA VERONICA MAUTNER
COLUNISTA DA FOLHA
Falar sobre sensações ou estados de ânimo é uma tarefa difícil, quem dirá então responder a questões sobre felicidade.
Para falar dela, temos que ficar
no campo do senso comum que
exige que façamos comparações e analogias. Direi que felicidade é um estado de ânimo, levemente diferente de alegria,
euforia, alívio, satisfação, bem-estar. Tudo isso, com certeza,
assim como a idéia de felicidade, é atributo da consciência, da
noção de tempo e de espaço.
Indagados, de chofre, por um
entrevistador, se nos consideramos felizes ou não, temos a
tendência de responder com a
afirmação da negação: "Não
respondo se sou ou não feliz, o
que vou sim é afirmar que não
sou infeliz ou que sou infeliz".
A resposta fica uma espécie
de "percebendo a desgraça em
meu entorno até que sou bem
feliz". Ou ainda: "Poderia ser
bem pior". Tudo comparações.
Quando nos perguntam se os
brasileiros (os outros, não eu)
são ou não felizes, a resposta
dada, apesar de diferente, é
coerente com o que disse antes:
"Se sou feliz, é porque vejo ao
meu redor outros bem menos
aquinhoados pela vida que eu".
No surgimento dessas respostas, temos rápidos jogos
mentais que acontecem sempre que somos indagados sobre
essas questões -tão íntimas
quanto genéricas. Lá no fundo,
sabemos que, se não compararmos, fica impossível definir
com clareza o que sentimos.
Esse questionamento não é
desvinculado do estado do
mundo hoje. Quando o futuro
nos parece nebuloso, quando
não sabemos bem o que esperar do amanhã, temos que inventar ou resgatar um estado de ânimo onde teríamos o tão
desejado bem-estar. Se não podemos ter esse paraíso agora,
que o tenhamos ao menos para
o futuro. No mundo massificado onde vivemos nosso presente extendido ou o hoje, tudo é mercadoria. Tratamos, então, o
sonho de felicidade também
como "coisa" da qual gostaríamos de ter também boa fatia.
Pensando as respostas à pesquisa do Datafolha, onde 76%
dizem-se felizes e 22% mais ou
menos felizes, e comparando
os números aos obtidos quando tinham de falar da felicidade
dos outros, ficamos surpresos
com a diferença. Só 28% dos
entrevistados vêem felicidade
na vida desses outros, 55% os
acham mais ou menos felizes.
Pode parecer paradoxal, mas
não é absurdo. Quando falo da
minha felicidade, falo de esperança e de futuro. Quando falo
dos outros, idealizo menos. Como já disse, a preocupação com
a felicidade intensifica-se nos
momentos em que o futuro não
está claro. Trocamos então a
visão de futuro pela do passado
e mergulhamos numa saudade
de uns tantos momentos felizes já vividos. Só posso planejar
quando sei o que desejo que se
realize. Se não sei o que será
bom amanhã, fico lembrando
os bons momentos passados,
como que buscando inspiração.
Lembrando-nos de momentos fugazes do passado, retemos a sensação do real já vivido. Sonhar com felicidade é
tentar reter momentos plenos
que guardamos na memória.
Quando nos indagam se somos
ou não felizes, respondemos
comparando hoje com nossas
memórias. Quando nos perguntam se os outros são felizes,
ficamos só com o presente. Não
lhes capto a memória, desconheço-lhes o passado e, por isso, tendo a considerá-los menos felizes. Isto é, sei que posso
ser feliz porque já fui e me lembro. Se eles serão felizes, não
sei pois não lhes conheço a história. Assim entendo eu o aparente paradoxo das respostas.
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de SP, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br
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