São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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ANÁLISE

Felicidade vai-se embora

Quando eu falo da minha felicidade, falo de esperança e de futuro; quando eu falo dos outros, idealizo menos

ANNA VERONICA MAUTNER
COLUNISTA DA FOLHA

Falar sobre sensações ou estados de ânimo é uma tarefa difícil, quem dirá então responder a questões sobre felicidade.
Para falar dela, temos que ficar no campo do senso comum que exige que façamos comparações e analogias. Direi que felicidade é um estado de ânimo, levemente diferente de alegria, euforia, alívio, satisfação, bem-estar. Tudo isso, com certeza, assim como a idéia de felicidade, é atributo da consciência, da noção de tempo e de espaço.
Indagados, de chofre, por um entrevistador, se nos consideramos felizes ou não, temos a tendência de responder com a afirmação da negação: "Não respondo se sou ou não feliz, o que vou sim é afirmar que não sou infeliz ou que sou infeliz".
A resposta fica uma espécie de "percebendo a desgraça em meu entorno até que sou bem feliz". Ou ainda: "Poderia ser bem pior". Tudo comparações.
Quando nos perguntam se os brasileiros (os outros, não eu) são ou não felizes, a resposta dada, apesar de diferente, é coerente com o que disse antes: "Se sou feliz, é porque vejo ao meu redor outros bem menos aquinhoados pela vida que eu".
No surgimento dessas respostas, temos rápidos jogos mentais que acontecem sempre que somos indagados sobre essas questões -tão íntimas quanto genéricas. Lá no fundo, sabemos que, se não compararmos, fica impossível definir com clareza o que sentimos.
Esse questionamento não é desvinculado do estado do mundo hoje. Quando o futuro nos parece nebuloso, quando não sabemos bem o que esperar do amanhã, temos que inventar ou resgatar um estado de ânimo onde teríamos o tão desejado bem-estar. Se não podemos ter esse paraíso agora, que o tenhamos ao menos para o futuro. No mundo massificado onde vivemos nosso presente extendido ou o hoje, tudo é mercadoria. Tratamos, então, o sonho de felicidade também como "coisa" da qual gostaríamos de ter também boa fatia.
Pensando as respostas à pesquisa do Datafolha, onde 76% dizem-se felizes e 22% mais ou menos felizes, e comparando os números aos obtidos quando tinham de falar da felicidade dos outros, ficamos surpresos com a diferença. Só 28% dos entrevistados vêem felicidade na vida desses outros, 55% os acham mais ou menos felizes.
Pode parecer paradoxal, mas não é absurdo. Quando falo da minha felicidade, falo de esperança e de futuro. Quando falo dos outros, idealizo menos. Como já disse, a preocupação com a felicidade intensifica-se nos momentos em que o futuro não está claro. Trocamos então a visão de futuro pela do passado e mergulhamos numa saudade de uns tantos momentos felizes já vividos. Só posso planejar quando sei o que desejo que se realize. Se não sei o que será bom amanhã, fico lembrando os bons momentos passados, como que buscando inspiração.
Lembrando-nos de momentos fugazes do passado, retemos a sensação do real já vivido. Sonhar com felicidade é tentar reter momentos plenos que guardamos na memória.
Quando nos indagam se somos ou não felizes, respondemos comparando hoje com nossas memórias. Quando nos perguntam se os outros são felizes, ficamos só com o presente. Não lhes capto a memória, desconheço-lhes o passado e, por isso, tendo a considerá-los menos felizes. Isto é, sei que posso ser feliz porque já fui e me lembro. Se eles serão felizes, não sei pois não lhes conheço a história. Assim entendo eu o aparente paradoxo das respostas.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de SP, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br


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