São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 2008

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Pesquisador aponta violência negociada nas cadeias do Rio

Detentos consideram "razoável" apanhar, afirma ex-agente penitenciário em estudo de doutorado, publicado em livro

Para os presos, agressão é melhor que punição formal, que pode sujar a ficha e levar à perda de benefícios, como a liberdade condicional

RAPHAEL GOMIDE
DA SUCURSAL DO RIO

A violência de agentes penitenciários contra os presos substitui a burocracia e os mecanismos formais de punição nas cadeias do Rio de Janeiro, em uma relação quase "consentida" pelas duas partes.
É o que Anderson Castro e Silva, ex-agente penitenciário por dois anos e meio e doutorando em ciências sociais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), chama de "violência negociada". Sua pesquisa sobre o assunto resultou no livro "Nos Braços da Lei - O Uso da Violência Negociada no Interior das Prisões".
Para ele, vigora nas cadeias a desnormatização, ou uma lei própria ("o código da cela"), e as agressões se encaixam nessa lógica. A pesquisa de Castro e Silva teve como principais interlocutores agentes penitenciários, apesar de ter ouvido também outros atores do universo prisional. Sob a justificativa de falta de instrumentos de repressão, más condições de trabalho, superlotação e poucos guardas para o número de internos, muitos inspetores acham que "a única forma de funcionar [a cadeia] é na porrada, não tem outra", como diz um agente. A violência é "valor moral vigente no ambiente prisional" e vista como "coisa de sujeito homem", segundo relata o pesquisador.
De acordo com o trabalho, os presos consideram "razoável" apanhar ao cometerem infração, em vez da punição formal administrativa, que poderia lhe custar uma "parte" (comunicação interna de delito) e lhe fazer perder benefícios como remissão de pena ou liberdade condicional. "No discurso do agente", segundo o autor, presos chegam a "pedir" para ser agredidos. "O preso enfrentou o guarda. Você manda ele para um lugar e ele não vai. Aí eu uso a força física. Ele tem que te respeitar. Essa porrada ele vai sair e dizer "obrigado", pois a "parte" vai pro prontuário e se ele tá vencendo alguma coisa [benefício], acaba com ele", diz um agente no livro.
A punição física como "violência negociada", afirma o pesquisador, é "aceita" internamente, por exemplo, em casos de tentativa de fuga, uso de entorpecentes e ofensas à honra do agente. Segundo Castro e Silva, denunciar uma surra à delegacia ou a grupos de direitos humanos pode ser visto como "coisa de "comédia'", não de "bandido", "sujeito homem".
Há presos que se "apresentam" para a surra. O pesquisador viu uma negociação, após um interno ter sofrido anotação e tentado trocar a punição.
"Aqui tem "bandido" e tem "comédia" também. Eu sou sujeito homem. Só não pode bater na minha cara. Agora, se eu errei, seguro a onda", disse o preso. O inspetor disse por que não batia em "vagabundo" na unidade. "Você dá um tapa e ele vai lá reclamar com o papai e mamãe. É tudo comédia."
O pesquisador explica, porém, que não significa que os presos gostam de apanhar, mas que aceitam "racionalmente" a punição porque é a menos pior das opções -as outras são ser espancado pelo "coletivo", caso a ação prejudique o grupo, ou a sanção oficial.
"A coça do guarda é infinitamente menor que a do "coletivo". O preso é coagido, por não ter outras opções. Para ele, isso é quase natural."


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