|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Pesquisador aponta violência negociada nas cadeias do Rio
Detentos consideram "razoável" apanhar, afirma ex-agente penitenciário em estudo de doutorado, publicado em livro
Para os presos, agressão é melhor que punição formal, que pode sujar a ficha e levar à perda de benefícios, como a liberdade condicional
RAPHAEL GOMIDE
DA SUCURSAL DO RIO
A violência de agentes penitenciários contra os presos
substitui a burocracia e os mecanismos formais de punição
nas cadeias do Rio de Janeiro,
em uma relação quase "consentida" pelas duas partes.
É o que Anderson Castro e
Silva, ex-agente penitenciário
por dois anos e meio e doutorando em ciências sociais da
Uerj (Universidade do Estado
do Rio de Janeiro), chama de
"violência negociada". Sua pesquisa sobre o assunto resultou
no livro "Nos Braços da Lei - O
Uso da Violência Negociada no
Interior das Prisões".
Para ele, vigora nas cadeias a
desnormatização, ou uma lei
própria ("o código da cela"), e
as agressões se encaixam nessa
lógica. A pesquisa de Castro e
Silva teve como principais interlocutores agentes penitenciários, apesar de ter ouvido
também outros atores do universo prisional. Sob a justificativa de falta de instrumentos de
repressão, más condições de
trabalho, superlotação e poucos guardas para o número de
internos, muitos inspetores
acham que "a única forma de
funcionar [a cadeia] é na porrada, não tem outra", como diz
um agente. A violência é "valor
moral vigente no ambiente prisional" e vista como "coisa de
sujeito homem", segundo relata o pesquisador.
De acordo com o trabalho, os
presos consideram "razoável"
apanhar ao cometerem infração, em vez da punição formal
administrativa, que poderia lhe
custar uma "parte" (comunicação interna de delito) e lhe fazer perder benefícios como remissão de pena ou liberdade
condicional. "No discurso do
agente", segundo o autor, presos chegam a "pedir" para ser
agredidos. "O preso enfrentou
o guarda. Você manda ele para
um lugar e ele não vai. Aí eu uso
a força física. Ele tem que te
respeitar. Essa porrada ele vai
sair e dizer "obrigado", pois a
"parte" vai pro prontuário e se
ele tá vencendo alguma coisa
[benefício], acaba com ele", diz
um agente no livro.
A punição física como "violência negociada", afirma o pesquisador, é "aceita" internamente, por exemplo, em casos
de tentativa de fuga, uso de entorpecentes e ofensas à honra
do agente. Segundo Castro e
Silva, denunciar uma surra à
delegacia ou a grupos de direitos humanos pode ser visto como "coisa de "comédia'", não de
"bandido", "sujeito homem".
Há presos que se "apresentam" para a surra. O pesquisador viu uma negociação, após
um interno ter sofrido anotação e tentado trocar a punição.
"Aqui tem "bandido" e tem
"comédia" também. Eu sou sujeito homem. Só não pode bater
na minha cara. Agora, se eu errei, seguro a onda", disse o preso. O inspetor disse por que não
batia em "vagabundo" na unidade. "Você dá um tapa e ele vai
lá reclamar com o papai e mamãe. É tudo comédia."
O pesquisador explica, porém, que não significa que os
presos gostam de apanhar, mas
que aceitam "racionalmente" a
punição porque é a menos pior
das opções -as outras são ser
espancado pelo "coletivo", caso
a ação prejudique o grupo, ou a
sanção oficial.
"A coça do guarda é infinitamente menor que a do "coletivo". O preso é coagido, por não
ter outras opções. Para ele, isso
é quase natural."
Texto Anterior: Outro lado: Situação vai melhorar com novo sistema de marcações, afirma superintendente Próximo Texto: Agentes perdem a liberdade fora do presídio Índice
|