São Paulo, quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

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PASQUALE CIPRO NETO

"Como nos sonhos as há"


A construção de Pessoa é um milhão de vezes melhor do que a dada pela gramática como igualmente possível

NO RECENTE vestibular da Unesp (de 8/11), muitas das questões de português exigiram o domínio de nomenclatura técnica. Uma dessas questões era baseada nestas passagens de "Pensar em Nada", de Antônio Prata: "O esporte é bom pra gente, fortalece o corpo e emburrece A MENTE." / "Antes que o primeiro corredor (...) atire UM TÊNIS..." / "...não há PREVISÃO DE PAGAMENTO.".
O enunciado da questão era o seguinte: "Os termos grafados com letras maiúsculas nas passagens acima (...) identificam-se pelo fato de exercerem a mesma função sintática nas orações de que fazem parte. Indique essa função: a) Sujeito; b) Predicativo do sujeito; c) Predicativo do objeto; d) Objeto direto; e) Complemento nominal".
Vou direto ao ponto e ao resultado prático da obtenção da resposta ("d"), à qual se chega com a simples observação de que em "o esporte emburrece a mente" e em "...atire um tênis..." os termos "a mente" e "um tênis" são complementos diretos das formas verbais "emburrece" e "atire", respectivamente.
E "previsão de pagamento" (de "...não há previsão de...")? Também é complemento verbal direto? Sim, esse termo complementa diretamente (isto é, sem a intermediação de preposição) a forma verbal "há", do verbo "haver", que, nesse caso, é impessoal, ou seja, não tem sujeito.
Convém lembrar que, nas modalidades cultas da língua, o pronome pessoal que funciona como objeto direto (na terceira pessoa) é "o" (e suas flexões): "Não conheço essa cantora / Não a conheço"; "Não entendo vocês / Não os entendo".
Posto isso, vamos ao resultado prático do fato de que, em "não há previsão de pagamento", o termo "previsão de pagamento" é objeto direto de "há". Para mostrar isso, vou pedir ajuda a Fernando Pessoa, autor destes memoráveis versos: "Grandes mistérios habitam / O limiar do meu ser, / O limiar onde hesitam / Grandes pássaros que fitam / Meu transpor tardo de os ver. / São aves cheias de abismo, / Como nos sonhos as há. / Hesito se sondo e cismo, / E à minha alma é cataclismo / O limiar onde está. / Então desperto do sonho / E sou alegre da luz, / Inda que em dia tristonho; / Porque o limiar é medonho / E todo passo é uma cruz".
Deus meu! Como pode alguém expressar com tanta beleza e precisão o que vai na alma dos sensíveis? Bem, tenho de voltar ao rés do chão. Quando escreve "São aves cheias de abismo / Como nos sonhos as há", Pessoa emprega o pronome "as" como objeto direto da forma verbal "há", que, no caso, equivale à que Prata empregou na passagem "...não há previsão de...".
Nos versos de Pessoa, o pronome "as" representa... Já sabe, não? O termo é "aves cheias de abismo". Aproveito para lembrar uma velha lição sobre "existir" e "haver".
Justamente por ser de um verbo impessoal, a forma "há" não se alteraria se o termo "previsão" (de "Não há previsão") fosse para o plural ("Não há previsões"), diferentemente do que ocorreria com o verbo "existir" ("Não existe previsão"; "Não existem previsões"). O verbo "existir" é sempre pessoal, ou seja, tem sujeito ("previsão" e "previsões", nos casos vistos).
Como ficariam os versos de Pessoa se trocássemos "haver" por "existir"? Lá vai: "São aves cheias de abismo / Como nos sonhos elas existem". Notou que foi preciso trocar "as" (objeto direto de "há") por "elas" (sujeito de "existem")?
Bem, esse exercício só serve para aprender a escrever de mais de uma maneira. Cá entre nós, a construção de Pessoa é bem melhor do que a dada pela gramática como igualmente possível, não? É isso.

inculta@uol.com.br


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