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CAMINHOS DA MEMÓRIA
Advogado e memorialista de São Paulo lembra dos crimes famosos e do tempo em que se acendiam fogueiras nas ruas dos Jardins
Crimes da cidade em mutação
CYNARA MENEZES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
O advogado Paulo José da Costa
Jr., 78, conseguiu sobreviver a vários homicídios -como criminalista, ganhou alguns casos, perdeu
outros. E conta em seus livros a
história dos que conquistaram a
glória torta de uma vida fora-da-lei: crimes célebres em que atuou
como defensor ou que apenas observou e que também fazem parte
da história de São Paulo.
A cidade onde Costa Jr. cresceu
era uma província bucólica na
qual, nas noites de São João, famílias se reuniam em torno da grande fogueira montada em plena
rua Haddock Lobo, atualmente
uma das mais movimentadas da
região da Paulista. "Soltávamos
fogos, balões, assávamos batata-doce na brasa", conta o advogado,
que é membro da Academia Paulista de Letras. "Era como uma cidade do interior."
Em meados da década de 50, ele
ainda passeava a cavalo pelas ruas
do Jardim Paulistano, vindo do
Jóquei. Durante a infância, seu cavalo negro Pons dormia em uma
cocheira instalada nos fundos da
casa dos pais, numa travessa da
Haddock Lobo, onde também se
criavam galinhas. A prefeitura reclamou da granja urbana e Pons
teve de ser vendido.
Pela calçada, de manhãzinha,
vinha o vendedor de leite de cabra, ordenhado na hora para
quem quisesse, quente e espumante no copo. Padeiros e peixeiros, precursores das "delivery" de
hoje, entregavam seus produtos
aos fregueses na porta.
ESQUARTEJADORA DA CASA VERDE
Ao mesmo tempo que as fogueiras juninas iam se apagando,
a violência, antes uma faísca, se
inflamava: hoje são mais de 4.000
homicídios por ano na capital,
apesar de casos como o de Florinda Marques Alves continuarem
chocantes. Fabricante de guarda-chuvas, Florinda foi parar nas
manchetes dos jornais de julho de
1956 sob o epíteto de "A Esquartejadora da Casa Verde".
A morena de 31 anos e traços
marcantes, para muitos até bem
atraente, estava cozinhando
quando o marido chegou dirigindo-lhe ofensas. Não teve dúvida:
pegou um martelo na prateleira e
atingiu a cabeça dele. Do chão, a
vítima teria ameaçado: "Quando
me levantar daqui, acabarei com
tua raça". Com mais quatro marteladas, Florinda o calou para
sempre.
Para se livrar do corpo, contou
com a ajuda do amante. A dupla,
porém, teve dificuldades em esquartejar a vítima e pediu a ajuda
"profissional" da irmã de Florinda, que era enfermeira e explicou
a necessidade de se fazer o corte
pelas juntas. Alguns dias depois,
um corpo, dividido em três malas
(cabeça, tronco e pernas) era encontrado por um caminhoneiro
no rio Tietê.
O mais incrível é que o advogado Costa Jr., encarregado de defender Florinda, acabou conseguindo absolvê-la em primeira
instância por legítima defesa. Pegou apenas dois anos por ocultação de cadáver. "Provei que o marido a tinha ameaçado com uma
navalha. O adultério também não
podia ser utilizado como agravante, porque a vítima consentia e até
fazia proveito financeiro da relação de Florinda com o amante",
argumenta.
Com o êxito, Costa Jr. se tornaria advogado de várias criminosas. Duas décadas antes da liberação feminina e do divórcio, brigas
entre casais podiam terminar em
tragédia, com o marido repressor
como vítima. "Só de mulher que
matou o marido a machadadas
defendi três", diz.
A situação de uma delas, Maria
Rondon, era agravada pela suspeita da Promotoria de que havia
dado os golpes de machado no
marido enquanto dormia. Costa
Jr. argumentou no tribunal que
não havia, porém, marcas de sangue na cama, apenas no assoalho.
Conseguiu reduzir a pena no primeiro júri.
O promotor recorreu, e o defensor perdeu o segundo julgamento
porque Maria havia confessado,
nesse ínterim, ter agido da seguinte forma: a cama tinha sido forrada com plástico para
que seu neto, um bebê, não a
molhasse enquanto dormia.
O marido recebeu as machadadas durante o sono e
foi arrastado sobre o plástico -daí a ausência de manchas no colchão.
O advogado atuou também no caso de Neide Fagundes, prostituta que fazia ponto
em um bar da praça Júlio Mesquita. Explorada por um investigador de polícia, era espancada
toda vez que voltava para casa
com pouco dinheiro. Um dia,
quando estava fazendo café, teve a
idéia de encharcar o amante em
álcool e atear fogo.
Como se arrependeu em seguida e tentou apagar as chamas com
um cobertor, pegou a pena mínima por homicídio culposo. Costa
Jr. se tornaria, mais tarde, padrinho de casamento da ""regenerada" Neide.
Em 1958, o criminalista recebeu
de um preso ilustre o pedido para
defendê-lo, embora não tivesse
dinheiro para pagar: Gino Meneghetti (1888-1976), o ladrão que
foi capaz de ludibriar a polícia repetidas vezes com atuações audaciosas durante as décadas de 1910
e 1920. ""Nunca feriu ninguém.
Era um ladrão romântico", afirma o advogado, que libertou Meneghetti da prisão em 1959.
Tornaram-se amigos. O ladrão
explicou a Costa Jr. seus métodos:
sempre agir sozinho e nunca passar mais de cinco minutos em cada residência. Para saber quem
estava ausente de casa, costumava
ir à praça da República e verificar
os carros estacionados.
Numa ocasião, realizou o feito
de roubar da mansão Matarazzo,
na avenida Paulista, um colar
com as cores da bandeira italiana (esmeraldas, rubis e diamantes). Preso Meneghetti, a
jóia, vista nas fotos de sua
captura, desapareceu.
O mistério ronda até hoje
o "Crime da rua Cuba", no
Jardim América. Na véspera do Natal de 1988, o casal
Jorge Toufic Bouchabki, advogado, e sua mulher, Maria
Cecília, foram encontrados
mortos na cama com tiros na
cabeça.
Quem teria sido o assassino?
As suspeitas recaíram sobre o filho do casal, Jorge Delmanto Bouchabki, então com 18 anos, que
não foi a julgamento por falta de
provas.
No livro ""Crimes Famosos"
(editora Millenium), o criminalista levanta sua hipótese: Maria Cecília teria sido morta pelo marido
e este, por sua vez, pelo filho.
Jorginho Bouchabki decidiu
processar Costa Jr. por ofendê-lo,
mas, em outubro do ano passado,
os juízes da 12ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São
Paulo entenderam que não houve
crime, arguindo o direito à ilação,
ou à dedução.
Bouchabki já anunciou que irá
recorrer da decisão.
Outro caso famoso em que não
atuou, mas que é narrado pelo advogado no livro "Meu São Paulo?
...Nunca Mais!" (editora Arx), relançado agora, é o do Castelinho
da av. São João, esquina com a rua
Apa. Costa Jr. conta que, no final
da década de 1930, morava na residência em forma de castelo a família Reis, também proprietária
do cine Broadway, nas proximidades da av. Ipiranga.
O filho Álvaro, desportista, com
perfil de playboy, tinha planos de
transformar o cinema em um rinque de patinação no gelo, que seria o primeiro do Brasil. Como a
mãe não concordou em dar o dinheiro para o caro empreendimento, matou-a e ao irmão a tiros, para suicidar-se em seguida.
"Desde então o Castelinho tem fama de mal-assombrado."
CALMA DA INFÂNCIA
Memorialista da cidade, Costa
Jr. mostra em "Meu São Paulo?..."
o saudosismo da calma época de
infância, embora, ironicamente,
os crimes tenham se tornado seu
ganha-pão na idade adulta. "Sequestro, furto de bicicleta, atentado ao pudor na calada da mata,
nem pensar. São Paulo era aconchegante e pequenina e transmitia tranquilidade", escreve.
Para garantir a imagem idílica
fresca na mente, instalou o escritório na casa ocupada pela família
a partir de 1935, na alameda Gabriel Monteiro da Silva, no Jardim
Paulistano, onde cavalgava. Na
entrada, uma frase do poeta gaúcho Mario Quintana emoldurada
entre fotos antigas da região traz a
justificativa: "O homem se muda
de todas as casas, menos daquela
onde viveu na infância". Em vez
do barulho de cascos, ouvem-se
sons de buzinas lá fora.
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