São Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 2006

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LETRAS JURÍDICAS

Arte e Constituição em Aldemir

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Quando me chegou a notícia da morte de Aldemir Martins, avançava nas anotações que me pusera a fazer a respeito da cultura brasileira, de suas garantias constitucionais e obrigações dos governos. Deixei as anotações de lado. Logo me veio à lembrança que o conheci em meados do século passado. Seu gosto pelo esporte, especialmente o futebol (alinhou-se no rol dos corintianos mais entusiasmados) e o pugilismo, desde tempos em que Eder Jofre evoluía para chegar a campeão mundial, mostravam a integração de seu espírito com manifestações da alma do povo. Continuamos próximos ao longo da vida. Aldemir foi artista, verdadeira e autenticamente brasileiro, em universo sob ataque, cada vez mais dominador, das criações internacionais, em particular graças à TV.
Dessa recordação amigável parti para outras idéias, ao percorrer capítulos sobre cultura e desporto em duas seções seqüenciais na Carta Magna, de pouco interesse político e de muito valor para o Brasil. O artigo 215 atribui ao Estado a responsabilidade de garantir "a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional". Sabe-se que esse exercício não é assegurado. Basta ver a falha preservação de nosso patrimônio na área da cultura. Cabe observar ainda a dificuldade de acesso às chamadas fontes das artes nacionais.
Estão muito contaminadas até as indígenas pelo influxo vindo de fora. Aldemir Martins percorreu o rumo do artigo 215, mesmo antes que a Carta fosse votada em 1988. Foi permanentemente verificador ou, melhor ainda, vivenciador de realidades brasileiras, transpostas em suas criações de arte, sendo ele mesmo, individualmente, difundidor de coisas nossas, de símbolos da essencialidade da nação e de sua gente, das cores e das características que a definem.
A Constituição integra, no patrimônio deste país, os bens de natureza material e imaterial, "portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". Poucos artistas tiveram referência tão permanente, aos bens imateriais mencionados, quanto Aldemir Martins. Ele descera de seu Ceará, no rumo sul, para o Rio de Janeiro, mas acabou passando por São Paulo e aqui ficando. O gosto comum pela arte, pelo futebol e pelo pugilismo sempre nos rendeu bons papos. Nessa altura de minhas divagações e tristeza pela morte do amigo, verifiquei uma coincidência entre o artista e o artigo 216 da Constituição, no conjunto dos seus incisos. Representam a súmula de algumas das preocupações de Aldemir, enquanto formas de sua expressão artística e de sua atuação no universo da arte brasileira. Também dos modos de criar, fazer e viver a arte e a vida.
A consciência da importância da preservação dos valores culturais e do dever correspondente a assegurá-los deveria estar, com inspiração social, no pensamento de todos os cidadãos. A arte, como demonstraram grandes pintores e escultores do mundo, através dos séculos e, até poucos dias atrás, o nosso Aldemir Martins, embora seja bem permanente da nacionalidade, nem sempre tem encontrado, nas autoridades, a compreensão de suas manifestações.
Em nenhuma parte, os grandes desenvolvimentos artísticos se fizeram sem seus mecenas, sem o patrocínio do Estado. A arte, tomada em si mesma é, por natureza, não econômica. Apesar disso, é muitas vezes dispendiosa. Sem a contribuição privada e a vigorosa compreensão dos poderes públicos, nenhum país percorre o difícil caminho do progresso artístico, salvo por projeções de gênios individuais, como foi Aldemir Martins.


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