|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LETRAS JURÍDICAS
Arte e Constituição em Aldemir
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
Quando me chegou a notícia
da morte de Aldemir Martins, avançava nas anotações que
me pusera a fazer a respeito da
cultura brasileira, de suas garantias constitucionais e obrigações
dos governos. Deixei as anotações
de lado. Logo me veio à lembrança que o conheci em meados do
século passado. Seu gosto pelo esporte, especialmente o futebol
(alinhou-se no rol dos corintianos
mais entusiasmados) e o pugilismo, desde tempos em que Eder Jofre evoluía para chegar a campeão mundial, mostravam a integração de seu espírito com manifestações da alma do povo. Continuamos próximos ao longo da vida. Aldemir foi artista, verdadeira
e autenticamente brasileiro, em
universo sob ataque, cada vez
mais dominador, das criações internacionais, em particular graças à TV.
Dessa recordação amigável parti para outras idéias, ao percorrer
capítulos sobre cultura e desporto
em duas seções seqüenciais na
Carta Magna, de pouco interesse
político e de muito valor para o
Brasil. O artigo 215 atribui ao Estado a responsabilidade de garantir "a todos o pleno exercício dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional". Sabe-se
que esse exercício não é assegurado. Basta ver a falha preservação
de nosso patrimônio na área da
cultura. Cabe observar ainda a dificuldade de acesso às chamadas
fontes das artes nacionais.
Estão muito contaminadas até
as indígenas pelo influxo vindo de
fora. Aldemir Martins percorreu o
rumo do artigo 215, mesmo antes
que a Carta fosse votada em 1988.
Foi permanentemente verificador
ou, melhor ainda, vivenciador de
realidades brasileiras, transpostas
em suas criações de arte, sendo ele
mesmo, individualmente, difundidor de coisas nossas, de símbolos da essencialidade da nação e
de sua gente, das cores e das características que a definem.
A Constituição integra, no patrimônio deste país, os bens de natureza material e imaterial, "portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". Poucos artistas tiveram referência tão permanente, aos bens imateriais mencionados, quanto Aldemir Martins. Ele descera de seu Ceará, no
rumo sul, para o Rio de Janeiro,
mas acabou passando por São
Paulo e aqui ficando. O gosto comum pela arte, pelo futebol e pelo
pugilismo sempre nos rendeu
bons papos. Nessa altura de minhas divagações e tristeza pela
morte do amigo, verifiquei uma
coincidência entre o artista e o artigo 216 da Constituição, no conjunto dos seus incisos. Representam a súmula de algumas das
preocupações de Aldemir, enquanto formas de sua expressão
artística e de sua atuação no universo da arte brasileira. Também
dos modos de criar, fazer e viver a
arte e a vida.
A consciência da importância
da preservação dos valores culturais e do dever correspondente a
assegurá-los deveria estar, com
inspiração social, no pensamento
de todos os cidadãos. A arte, como
demonstraram grandes pintores e
escultores do mundo, através dos
séculos e, até poucos dias atrás, o
nosso Aldemir Martins, embora
seja bem permanente da nacionalidade, nem sempre tem encontrado, nas autoridades, a compreensão de suas manifestações.
Em nenhuma parte, os grandes
desenvolvimentos artísticos se fizeram sem seus mecenas, sem o
patrocínio do Estado. A arte, tomada em si mesma é, por natureza, não econômica. Apesar disso, é
muitas vezes dispendiosa. Sem a
contribuição privada e a vigorosa
compreensão dos poderes públicos, nenhum país percorre o difícil
caminho do progresso artístico,
salvo por projeções de gênios individuais, como foi Aldemir Martins.
Texto Anterior: Definição de método melhora rendimento Próximo Texto: Livros Jurídicos Índice
|