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MOACYR SCLIAR
Lágrimas da cebola & outras lágrimas
Desde então ela se proibiu de chorar. Mas descobriu que, pelo menos, poderia verter lágrimas. Descascando cebolas
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Cientistas da Nova Zelândia e do Japão
criaram uma cebola "antilágrimas". Eles
anularam, no alimento, a atuação de um
gene responsável pela gênese da enzima
que causa este efeito. Um dos diretores
da pesquisa, Colin Eady, disse que a descoberta pode acabar com um dos maiores "problemas" da cozinha: o fato de que cortar uma simples cebola nos faz chorar. Folha Online, 1º de fevereiro de 2008.
DE UMA COISA Aracy sempre
teve certeza: cozinha e tristeza governavam sua vida. À
cozinha estava destinada desde
muito criança: de família pobre, não
conseguiu completar os estudos. A
mãe, doente, não podia tomar conta
da casa, e o pai decidiu que ela, a filha
mais velha, assumiria esta função. E
aí era aquela rotina: acordar às cinco
da manhã, preparar o café para o pai
e os irmãos, antes que eles saíssem
para o trabalho na roça, depois limpar a casa, lavar a roupa, dar comida
para a mãe.
À noite estava tão cansada que, depois de lavar os pratos do jantar, caía
na cama direto. Será que minha vida
vai ser só isso, perguntava-se, angustiada. Temia que sim: moça pobre,
feia, sequer sonhava com um namorado, mesmo porque nunca tinha
tempo para namorar. E quando pensava no triste futuro que a esperava
tinha vontade de chorar.
Só que não poderia chorar. O pai,
os irmãos não admitiriam isso, essa
demonstração de fraqueza. Da única
vez em que ela prorrompeu em
prantos, enquanto servia o jantar,
eles ficaram irritados: o que é isso,
Aracy, chorar não adianta nada, chorar não melhora as coisas, faz como a
gente e agüenta firme.
Desde então ela se proibiu de chorar. Mas descobriu que, pelo menos,
poderia verter lágrimas.
Descascando cebolas.
Cebola não faltava no sítio: o pai e
os irmãos gostavam muito, tinham
até uma pequena plantação do vegetal. De modo que, quando ela se sentia triste, tudo o que tinha a fazer era preparar uma salada de cebolas. As
lágrimas corriam-lhe livremente
pelo rosto, mas não se preocupava
sequer em enxugá-las; se o pai ou
um irmão lhe perguntava a respeito,
tudo o que tinha de fazer era incriminar a cebola: essa coisa faz a gente
chorar.
O tempo passou. Os pais faleceram, os irmãos seguiram cada qual o
seu caminho e Aracy acabou casando com o carteiro da região. Era um
bom homem, muito gentil; viviam
bem e tiveram três filhos, mas a vontade de chorar continuava perseguindo Aracy.
Era como se a tristeza a tivesse impregnado, passando a fazer parte do
seu modo de ser. O marido não se irritava por vê-la chorando; mas ficava tão triste, e Aracy gostava tanto dele, que logo voltou às cebolas. O
marido e os filhos nem gostavam
muito de cebola, mas comiam para
agradar à mãe. Afinal, se ela derramava copiosas lágrimas preparando
a salada, eles tinham de mostrar que
o sacrifício valia a pena.
Recentemente Aracy ficou sabendo que cientistas -esses cientistas,
sempre inventando coisas- haviam
descoberto uma cebola que não faz
chorar. E esta notícia a deixou triste,
tão triste que teve de correr para a
cozinha e descascar uma cebola (daquelas antigas e boas cebolas) para
chorar um pouco.
Mas a pergunta agora não sai de
sua cabeça: como chorar quando as
cebolas não provocarem mais lágrimas?
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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