São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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DANUZA LEÃO

Uma questão de tom

Qual é a sua cor? Tem certeza? Pode até ser, mas certeza mes-mo ninguém tem.
Alguém lançou a brilhante idéia de reservar 20% das vagas das universidades para negros pobres. O candidato preencherá um formulário declarando sua cor, e detalhe: junto, uma foto, para que a direção do estabelecimento concorde -ou não- com essa declaração. A idéia é que, entre um branco pobre e um negro pobre, o negro deva ser o privilegiado. Mas no Brasil, onde a Lei Afonso Arinos pune o preconceito racial com cadeia, vai começar de novo o papo de saber quem é negro e quem não é? Mesmo que a discriminação seja para o bem, a gente vai se sentir um pouco na Alemanha de Hitler, e a história prova que essas coisas não costumam dar certo.
Ninguém tem certeza de suas origens. Por mais que, numa família, todos sejam louros de olhos azuis, ninguém pode garantir que uma vaga bisavó, numa noite de lua cheia, cansada da monotonia de cabelos tão lisos e carnes tão brancas, não tenha caído nos braços de um mulato bonito. Se nove meses depois nasce uma criança transparente de tão clara, isso não quer dizer que três ou quatro gerações mais tarde não possa nascer uma moreninha cor de canela que vai espantar a família inteira -aquela família que todos tinham certeza de ser branca. As leis da genética não são nada seguras, e bem fez Fernando Henrique quando disse que tinha um pé na cozinha. Aliás, todo brasileiro tem esse pezinho, mesmo que não pareça. Até Xuxa.
Se Michael Jackson quisesse entrar numa universidade brasileira e se declarasse negro, seria aceito ou sua cor seria discutida na Justiça? O problema é o tom, já que entre o branco e o negro existem infinitas nuances: o café com leite, o achocolatado, o cor-de-rosa, o café, o branco amarelado, o cor de jambo (no deserto, existem homens que são azul-marinho, de tão pretos), a gengiva mais roxa ou mais cor-de-rosa, e não me consta que exista algum meio de comprovar -de maneira definitiva- se alguém é branco ou negro.
Negros bonitos, com a pele cor de trufa de chocolate e a pele brilhante como um cetim são os que mais se orgulham de sua cor, proclamando que black is beautiful; quando, além de serem lindos, são artistas, melhor ainda. Mas um branquinho pobre, feioso, com um cabelinho ruim e a pele de um cinza meio embaçado, não vai achar a menor graça em se declarar negro -e se for esse o preço para entrar na universidade, talvez ele prefira um trabalho alternativo. Se ninguém souber quem é o pai, o filho de Pelé vai ter -por lei- mais direito a uma vaga na faculdade do que o filho do porteiro do meu prédio, que é mais branco do que Branca de Neve? E se houver uma vaga só, disputada por um branco e um negro, ambos pobres, quem leva?
O pior é que muita gente que nunca parou um minuto para pensar a que raça pertence -o que, aliás, é a melhor resposta para o preconceito- vai começar a pensar na sua própria raça (e na dos outros).


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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