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MOACYR SCLIAR
As entrelinhas de um relatório
Quando Mariana voltava para casa, o marido exigia-lhe um relatório escrito. O objetivo era comparar, item por
item, tal relatório com o que ela
havia anotado no caderno antes
de sair.
-No caderno você disse que tinha dentista às duas. Mas no relatório consta que você chegou lá
às duas e meia. Por quê?
-Por causa do congestionamento.
-Sim? E onde foi o congestionamento?
Porque ele tinha meios de checar os congestionamentos: um
amigo, motorista de táxi, dava-lhe as informações necessárias.
Mas não era só isso que ele checava. Avaliava o tempo gasto no supermercado, por exemplo, comparando-o com a quantidade de
compras feitas. Se na lista de compras figuravam dez artigos, o
tempo máximo que ele admitiria
-como resultado de precisos e
minuciosos cálculos- era meia
hora.
Também tinha estimativas do
tempo gasto em agências bancárias, na farmácia, no correio. Em
suma: controlava de forma absoluta a vida de Mariana. E gabava-se disso: "Você jamais dará
um passo", dizia, "sem que eu disso tome conhecimento".
Uma tarde ela voltou para casa
com um ar feliz. Tão feliz que o
marido estranhou. Exigiu de imediato o relatório. E, ao compará-lo com a programação do caderno, reclamou:
-Você disse que ia ficar na sua
amiga Sandra uma hora, do
meio-dia à uma. Mas você saiu
do prédio dela à uma e meia. Por
quê?
-Porque fiquei meia hora
trancada no elevador -disse ela.
-Você pode perguntar a Sandra
e ao ascensorista.
Ele não hesitou. Foi ao telefone
e ligou para Sandra. Que confirmou: de fato, o elevador tinha ficado parado meia hora, ninguém
sabia exatamente o porquê: talvez já fosse um prelúdio do apagão -ou algo do gênero.
"Meia hora trancada no elevador", era o que dizia o relatório de
Mariana. Mas ela não contava
que aquela tinha sido a meia hora mais feliz de sua vida, meia hora que ela passara fazendo amor
com o ascensorista, um antigo
namorado que o destino -só podia ser o destino -trouxera
àquele lugar. De destino, e de
amor, o relatório não falava. Às
vezes os relatórios dizem mais nas
entrelinhas do que nas linhas.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.
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