São Paulo, segunda-feira, 11 de junho de 2001

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MOACYR SCLIAR

As entrelinhas de um relatório

Quando Mariana voltava para casa, o marido exigia-lhe um relatório escrito. O objetivo era comparar, item por item, tal relatório com o que ela havia anotado no caderno antes de sair.
-No caderno você disse que tinha dentista às duas. Mas no relatório consta que você chegou lá às duas e meia. Por quê?
-Por causa do congestionamento.
-Sim? E onde foi o congestionamento?
Porque ele tinha meios de checar os congestionamentos: um amigo, motorista de táxi, dava-lhe as informações necessárias. Mas não era só isso que ele checava. Avaliava o tempo gasto no supermercado, por exemplo, comparando-o com a quantidade de compras feitas. Se na lista de compras figuravam dez artigos, o tempo máximo que ele admitiria -como resultado de precisos e minuciosos cálculos- era meia hora.
Também tinha estimativas do tempo gasto em agências bancárias, na farmácia, no correio. Em suma: controlava de forma absoluta a vida de Mariana. E gabava-se disso: "Você jamais dará um passo", dizia, "sem que eu disso tome conhecimento".
Uma tarde ela voltou para casa com um ar feliz. Tão feliz que o marido estranhou. Exigiu de imediato o relatório. E, ao compará-lo com a programação do caderno, reclamou:
-Você disse que ia ficar na sua amiga Sandra uma hora, do meio-dia à uma. Mas você saiu do prédio dela à uma e meia. Por quê?
-Porque fiquei meia hora trancada no elevador -disse ela. -Você pode perguntar a Sandra e ao ascensorista.
Ele não hesitou. Foi ao telefone e ligou para Sandra. Que confirmou: de fato, o elevador tinha ficado parado meia hora, ninguém sabia exatamente o porquê: talvez já fosse um prelúdio do apagão -ou algo do gênero.
"Meia hora trancada no elevador", era o que dizia o relatório de Mariana. Mas ela não contava que aquela tinha sido a meia hora mais feliz de sua vida, meia hora que ela passara fazendo amor com o ascensorista, um antigo namorado que o destino -só podia ser o destino -trouxera àquele lugar. De destino, e de amor, o relatório não falava. Às vezes os relatórios dizem mais nas entrelinhas do que nas linhas.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.



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