São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 2002

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MOACYR SCLIAR

Como num filme

Winona Ryder é considerada culpada de furto. Um júri condenou a atriz por deixar a loja Saks, em Beverly Hills, com cerca de US$ 5.500 em itens que incluíam tops, bolsas e meias. Mundo, 6.nov.2002

Como num filme, ela entrou na loja aparentando muita calma, indiferença mesmo. Ignorou o olhar curioso das pessoas e dedicou-se a examinar vários artigos: bolsas, meias, essas coisas. Como num filme, ela desempenhava o papel de uma cliente comum, ainda que rica e sofisticada, e, na condição de cliente comum, fez às vendedoras várias perguntas acerca de qualidade e de preço. Como num filme, agradeceu polidamente as informações.
Como num filme, ela dirigiu-se à cabine levando roupas para experimentar. Sabia que havia câmeras por ali, mas procurou ignorá-las. Num filme, a atriz não toma conhecimento de câmeras. Elas estão presentes, é certo, e são uma presença implacável, como a presença divina, a lente da câmera funciona como o olho de Deus. Mas ela podia aparentar calma: anos de treinamento o permitiam. Podia se dar ao luxo de caminhar despreocupada, como se fosse a única pessoa naquela loja, naquela cidade, no mundo; podia se dar ao luxo até de sorrir misteriosamente, como essas pessoas que mantêm consigo próprias um diálogo secreto e misterioso.
Como num filme, entrou na cabine. E, como num filme, agiu de forma rápida e precisa, acomodando os artigos em bolsas plásticas ou escondendo-os sob a própria roupa. Como num filme, mirou-se ao espelho; e, como num filme, respirou fundo. Porque agora, como num filme, vinha a etapa decisiva, aqueles momentos que deixam os espectadores de respiração suspensa, as mãos remexendo nervosamente o saco de pipocas.
Como num filme, ela saiu da cabine. Como esperava, não havia ninguém por perto. E, como num filme, dirigiu-se à saída. E aí, sem querer, apressou o passo. Não deveria fazê-lo, mas era explicável: quando ultrapassasse aquela porta, estaria livre. Livre e triunfante. O empreendimento todo teria sido um sucesso. Ela poderia respirar aliviada, poderia ser ela própria, não aquela dos filmes.
Deu alguns passos e então aconteceu.
Como num filme, seguranças correram atrás dela. Como num filme, agarraram-na. Como num filme, disseram que ela teria de acompanhá-los até a delegacia de polícia.
Como num filme, ela tentou protestar. Mas foi inútil. Porque agora, infelizmente, não era mais filme. Agora era a vida real. A vida que a câmera, implacável, tinha registrado em imagens. Imagens como aquelas que a gente, comendo pipoca, vê em filmes. Às vezes não muito bons.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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