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MOACYR SCLIAR
Como num filme
Winona Ryder é considerada culpada de furto. Um júri condenou a
atriz por deixar a loja Saks, em Beverly Hills, com cerca de US$ 5.500
em itens que incluíam tops, bolsas e meias. Mundo, 6.nov.2002
Como num filme, ela entrou
na loja aparentando muita
calma, indiferença mesmo. Ignorou o olhar curioso das pessoas e
dedicou-se a examinar vários artigos: bolsas, meias, essas coisas.
Como num filme, ela desempenhava o papel de uma cliente comum, ainda que rica e sofisticada, e, na condição de cliente comum, fez às vendedoras várias
perguntas acerca de qualidade e
de preço. Como num filme, agradeceu polidamente as informações.
Como num filme, ela dirigiu-se
à cabine levando roupas para experimentar. Sabia que havia câmeras por ali, mas procurou ignorá-las. Num filme, a atriz não toma conhecimento de câmeras.
Elas estão presentes, é certo, e são
uma presença implacável, como a
presença divina, a lente da câmera funciona como o olho de Deus.
Mas ela podia aparentar calma:
anos de treinamento o permitiam. Podia se dar ao luxo de caminhar despreocupada, como se
fosse a única pessoa naquela loja,
naquela cidade, no mundo; podia
se dar ao luxo até de sorrir misteriosamente, como essas pessoas
que mantêm consigo próprias um
diálogo secreto e misterioso.
Como num filme, entrou na cabine. E, como num filme, agiu de
forma rápida e precisa, acomodando os artigos em bolsas plásticas ou escondendo-os sob a própria roupa. Como num filme, mirou-se ao espelho; e, como num
filme, respirou fundo. Porque
agora, como num filme, vinha a
etapa decisiva, aqueles momentos
que deixam os espectadores de
respiração suspensa, as mãos remexendo nervosamente o saco de
pipocas.
Como num filme, ela saiu da
cabine. Como esperava, não havia ninguém por perto. E, como
num filme, dirigiu-se à saída. E
aí, sem querer, apressou o passo.
Não deveria fazê-lo, mas era explicável: quando ultrapassasse
aquela porta, estaria livre. Livre e
triunfante. O empreendimento
todo teria sido um sucesso. Ela
poderia respirar aliviada, poderia
ser ela própria, não aquela dos filmes.
Deu alguns passos e então aconteceu.
Como num filme, seguranças
correram atrás dela. Como num
filme, agarraram-na. Como num
filme, disseram que ela teria de
acompanhá-los até a delegacia de
polícia.
Como num filme, ela tentou
protestar. Mas foi inútil. Porque
agora, infelizmente, não era mais
filme. Agora era a vida real. A vida que a câmera, implacável, tinha registrado em imagens. Imagens como aquelas que a gente,
comendo pipoca, vê em filmes. Às
vezes não muito bons.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
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