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CAUSA NOBRE
Jô Clemente, fundadora da entidade, encorajou o filho, com síndrome de Down, a sair de casa
"A Apae ajudou a preparar a sociedade"
DA REPORTAGEM LOCAL
A vida de Jolinda Garcia dos
Santos Clemente, que em junho
faz 80 anos, confunde-se com a
história da Apae de São Paulo, a
instituição que ela ajudou a construir há quase meio século.
Casada com o médico Antonio
Clemente Filho e mãe de quatro
filhos, entre eles Zeca, portador
da síndrome de Down, Jô conseguiu, nos últimos 45 anos, mobilizar a sociedade em prol da inclusão dos deficientes mentais e
mostrar que o isolamento imposto a eles era equivocado.
Graças à primeira "feira da
bondade" que organizou, em
1966, Jô obteve recursos para
construir a sede da Apae, em um
terreno cedido pela prefeitura.
Em 1998, quando percebeu que
o filho Zeca envelhecera, abraçou
uma nova causa: a construção de
um centro especializado em estimular pessoas com deficiência
mental em fase de envelhecimento. Zeca viveu de forma independente, morou sozinho e
morreu, em 2001, aos 52 anos.
Leia trechos da entrevista concedida à Folha, na sede da Apae,
onde ela ocupa a presidência de
honra.
(CC)
Folha - Como foi acompanhar o
envelhecimento do Zeca?
Jô Clemente - O Zeca viveu bastante porque sempre teve um nível de vida muito bom. Eu criei
quatro filhos, e ele estava no
meio. Quando o Zeca se tornou
um homem, eu construí uma casa para ele e fiz ele morar sozinho. Foi uma coragem danada,
porque fui muito criticada. Muita gente imaginou: "por que a Jô
está botando o filho para fora?"
Mas é que os irmãos tinham se
casado e se mudado, e ele perguntava por que ele não. Comprei uma casa numa vila próxima à Apae para que, se eu morresse, ele fosse assistido.
Ele saía cedo para trabalhar na
Apae e voltava para casa à tarde.
Um dia, fomos passear no Rio.
Chegando ao hotel, eu disse: "tome um banho, se arrume e guarde suas roupas. Depois eu passo
aqui e a gente vai almoçar".
Quando voltei para pegá-lo, ele
estava do mesmo jeito que eu havia deixado, sentado na beira da
cama. Brinquei: "Tá morto? Não
tomou banho? Não fez nada?" Ele
disse: "sabe o que é mãe, estou
muito cansado". Foi aí que caiu a
minha ficha: ele havia ficado velho. Tinha 48 anos.
Quando voltei do Rio, participei de uma reunião na diretoria e
propus que fizéssemos algo em
benefício dos deficientes que estavam ficando velhos. Chamei
vários geriatras para me ajudar
na elaboração de um projeto voltado a uma velhice sadia.
O Zeca era muito estimulado.
Viajava em transatlântico, ia para Miami, fazia tudo o que os irmãos faziam. Uma vez ele tocou
bateria no navio. Antes da apresentação, fiquei louca, com medo de que alguma coisa desse errado, que ele furasse a bateria. Ele
chegou até mim e disse: "mãe,
calma, tome um uisquezinho
que tudo vai dar certo". Ao final,
2.000 pessoas o aplaudiram de
pé. Por muito tempo, ele reviveu
aquele momento. Dizia: "é mãe,
naquele dia eu virei Napoleão".
Folha - Em relação ao preconceito, a sra. acha que hoje é menor?
Jô -O pior pedaço continua sendo o pai e a mãe. Comigo não
aconteceu porque, quando o Zequinha nasceu, eu não conhecia
os sinais patentes do mongolismo. Meu marido médico proibiu
que me contassem [que o filho tinha síndrome de Down]. O tempo foi passando até que um dia o
levamos ao neurologista. Ele
olhou para o Zeca e disse: "o seu
filho é um retardado mental.
Cuide dele como se fosse uma
planta: alimente-o, zele por ele,
mas não espere nada em troca".
Saí do consultório achando
que o médico era um idiota completo. Imagina, o Zeca era tão bonitinho, tinha olhos azuis, era
lourinho. As dificuldades se
acentuaram no momento escolar. Os irmãos foram para a escola e ele também foi, de fralda,
mas foi. Como ele não conseguia
acompanhar, passei a percorrer
São Paulo para ver o que havia
para crianças com necessidades
especiais. Não tinha nada. Tinha
uma lá no Belém, que parecia um
depósito de menino doido.
Decidi contratar uma professora particular, fiz uma piscina
para ele nadar e comprei uma
bateria para ele tocar. Fui levando a coisa até quando fui convidada por um grupo de pais de
crianças excepcionais para montar uma associação, como já
acontecia em outros países.
Folha - Na sua opinião, qual foi o
maior feito da Apae?
Jô - A Apae deu um salto porque entendeu que não podíamos
maquiar nossos filhos para que
eles fossem aceitos pela sociedade. No início, foi isso o que a gente fez. Hoje, não. A Apae foi à comunidade e a preparou para que
aceitasse os deficientes mentais
como eles são, com as necessidades que eles têm.
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