São Paulo, domingo, 12 de março de 2006

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CAUSA NOBRE

Jô Clemente, fundadora da entidade, encorajou o filho, com síndrome de Down, a sair de casa

"A Apae ajudou a preparar a sociedade"

DA REPORTAGEM LOCAL

A vida de Jolinda Garcia dos Santos Clemente, que em junho faz 80 anos, confunde-se com a história da Apae de São Paulo, a instituição que ela ajudou a construir há quase meio século.
Casada com o médico Antonio Clemente Filho e mãe de quatro filhos, entre eles Zeca, portador da síndrome de Down, Jô conseguiu, nos últimos 45 anos, mobilizar a sociedade em prol da inclusão dos deficientes mentais e mostrar que o isolamento imposto a eles era equivocado.
Graças à primeira "feira da bondade" que organizou, em 1966, Jô obteve recursos para construir a sede da Apae, em um terreno cedido pela prefeitura.
Em 1998, quando percebeu que o filho Zeca envelhecera, abraçou uma nova causa: a construção de um centro especializado em estimular pessoas com deficiência mental em fase de envelhecimento. Zeca viveu de forma independente, morou sozinho e morreu, em 2001, aos 52 anos. Leia trechos da entrevista concedida à Folha, na sede da Apae, onde ela ocupa a presidência de honra. (CC)

Folha - Como foi acompanhar o envelhecimento do Zeca?
Jô Clemente -
O Zeca viveu bastante porque sempre teve um nível de vida muito bom. Eu criei quatro filhos, e ele estava no meio. Quando o Zeca se tornou um homem, eu construí uma casa para ele e fiz ele morar sozinho. Foi uma coragem danada, porque fui muito criticada. Muita gente imaginou: "por que a Jô está botando o filho para fora?" Mas é que os irmãos tinham se casado e se mudado, e ele perguntava por que ele não. Comprei uma casa numa vila próxima à Apae para que, se eu morresse, ele fosse assistido.
Ele saía cedo para trabalhar na Apae e voltava para casa à tarde. Um dia, fomos passear no Rio. Chegando ao hotel, eu disse: "tome um banho, se arrume e guarde suas roupas. Depois eu passo aqui e a gente vai almoçar". Quando voltei para pegá-lo, ele estava do mesmo jeito que eu havia deixado, sentado na beira da cama. Brinquei: "Tá morto? Não tomou banho? Não fez nada?" Ele disse: "sabe o que é mãe, estou muito cansado". Foi aí que caiu a minha ficha: ele havia ficado velho. Tinha 48 anos.
Quando voltei do Rio, participei de uma reunião na diretoria e propus que fizéssemos algo em benefício dos deficientes que estavam ficando velhos. Chamei vários geriatras para me ajudar na elaboração de um projeto voltado a uma velhice sadia.
O Zeca era muito estimulado. Viajava em transatlântico, ia para Miami, fazia tudo o que os irmãos faziam. Uma vez ele tocou bateria no navio. Antes da apresentação, fiquei louca, com medo de que alguma coisa desse errado, que ele furasse a bateria. Ele chegou até mim e disse: "mãe, calma, tome um uisquezinho que tudo vai dar certo". Ao final, 2.000 pessoas o aplaudiram de pé. Por muito tempo, ele reviveu aquele momento. Dizia: "é mãe, naquele dia eu virei Napoleão".

Folha - Em relação ao preconceito, a sra. acha que hoje é menor?
Jô -
O pior pedaço continua sendo o pai e a mãe. Comigo não aconteceu porque, quando o Zequinha nasceu, eu não conhecia os sinais patentes do mongolismo. Meu marido médico proibiu que me contassem [que o filho tinha síndrome de Down]. O tempo foi passando até que um dia o levamos ao neurologista. Ele olhou para o Zeca e disse: "o seu filho é um retardado mental. Cuide dele como se fosse uma planta: alimente-o, zele por ele, mas não espere nada em troca".
Saí do consultório achando que o médico era um idiota completo. Imagina, o Zeca era tão bonitinho, tinha olhos azuis, era lourinho. As dificuldades se acentuaram no momento escolar. Os irmãos foram para a escola e ele também foi, de fralda, mas foi. Como ele não conseguia acompanhar, passei a percorrer São Paulo para ver o que havia para crianças com necessidades especiais. Não tinha nada. Tinha uma lá no Belém, que parecia um depósito de menino doido.
Decidi contratar uma professora particular, fiz uma piscina para ele nadar e comprei uma bateria para ele tocar. Fui levando a coisa até quando fui convidada por um grupo de pais de crianças excepcionais para montar uma associação, como já acontecia em outros países.

Folha - Na sua opinião, qual foi o maior feito da Apae?
Jô -
A Apae deu um salto porque entendeu que não podíamos maquiar nossos filhos para que eles fossem aceitos pela sociedade. No início, foi isso o que a gente fez. Hoje, não. A Apae foi à comunidade e a preparou para que aceitasse os deficientes mentais como eles são, com as necessidades que eles têm.


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