|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LETRAS JURÍDICAS
Sobre raças, cores e pareceres
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
O empate de 1 a 1 no julgamento do Supremo Tribunal Federal em habeas corpus impetrado em favor de editor gaúcho acusado de racismo, seguido
do que a mídia chamou de bate-boca, explica por que o caso chegou às manchetes. O ministro José
Carlos Moreira Alves deferia a ordem, entendendo que os judeus
não são uma raça e assim o ataque do editor não configura racismo, estando prescrito o direito de
o punir. O ministro Maurício
Correia votou, a seguir, em sentido contrário, com algum aquecimento dos ânimos, o que acontece mais do que supõe a imprensa.
Durante o domínio do nazismo,
na Alemanha, milhões de judeus
sofreram o corte de seus direitos à
cidadania sob o argumento de
que constituíam uma raça inferior e morreram por isso, justificando a tensão que o debate
provoca.
Uma parte do aquecimento do
debate nasceu de parecer do professor Celso Lafer, cuja referência
por Moreira pareceu descortês a
Correia. Há, ainda, manifestação
sobre o aspecto penal, a cujo respeito merece leitura o seguro parecer do professor Miguel Reale
Júnior.
Além de cuidadosa avaliação filosófico-religiosa, o parecer de Lafer encontrou campo apropriado
no direito constitucional. A Carta
Magna afirma que os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil incluem (artigo
3º, inciso IV) a promoção do bem
de todos, sem preconceitos de raça, entre outros. Um dos princípios regentes das relações internacionais do Brasil consiste no repúdio ao terrorismo e ao racismo
(artigo 4º, inciso VIII). A preocupação do constituinte brasileiro
se mostrou mais forte no artigo 5º,
no campo dos direitos e garantias
fundamentais. Seu inciso XLII
impõe a inafiançabilidade e a imprescritibilidade para a prática
do racismo. Escreve Celso Lafer
que a estrutura dos direitos fundamentais dá estabilidade a um
sistema integrado de valores da
convivência coletiva, cujo elemento-fonte é a dignidade da
pessoa humana, justificando o especial rigor da norma.
Se o leitor voltar ao artigo 3º, verificará que considera cor um característico diferente da raça. Na
visão antropológica das origens
do ser humano, convencionou-se
que a cor era elemento étnico distintivo de peculiaridades próprias
de brancos, negros, amarelos e
vermelhos, em indicações evidentemente arbitrárias, como se vê
na falsa atribuição da cor amarela ou vermelha a quem não a tem.
Essa visão está ausente da Carta.
Duas palavras são especialmente importantes na interpretação
do texto constitucional para dele
extrair todos os seus efeitos jurídicos: preconceito e discriminação.
No preconceito, referido pela
Constituição, encontra-se o julgamento pessoal, formado por antecipação, que corresponde a avaliação contrária à pessoa ou ao
objeto enfocado, gerada por ódio,
intolerância ou outra causa negativa. O preconceito pode ser subjetivo, oculto, não manifestado, diferente da discriminação, que se
exterioriza pelo tratamento dado
ou pela opinião manifestada, diferenciando pessoas ou atos, segundo critérios proibidos por lei.
Aponta Lafer, corretamente, que
o critério da interpretação dos direitos humanos deve favorecer o
conteúdo do direito contemplado
pela Constituição. Reale Júnior
amplia a extensão do inciso XLII
para dizer que há no racismo realidade social e política, em referência à raça, enquanto caracterização física ou biológica do ser
humano. Daí resultar sua opinião de que o crime imputado ao
editor por ataques à raça judaica
(terminologia utilizada pelo acusado) constitui delito punível e
atingido pela imprescritibilidade.
Celso de Mello votou com Maurício Correia, Gilmar Mendes pediu
vista dos autos para melhor estudo. Espera-se o fim do debate na
próxima semana.
Texto Anterior: Deputado escapa de notificação com viagem Próximo Texto: Trânsito: Obra interdita av. do Estado por 2 meses Índice
|