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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Sobre raças, cores e pareceres

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

O empate de 1 a 1 no julgamento do Supremo Tribunal Federal em habeas corpus impetrado em favor de editor gaúcho acusado de racismo, seguido do que a mídia chamou de bate-boca, explica por que o caso chegou às manchetes. O ministro José Carlos Moreira Alves deferia a ordem, entendendo que os judeus não são uma raça e assim o ataque do editor não configura racismo, estando prescrito o direito de o punir. O ministro Maurício Correia votou, a seguir, em sentido contrário, com algum aquecimento dos ânimos, o que acontece mais do que supõe a imprensa. Durante o domínio do nazismo, na Alemanha, milhões de judeus sofreram o corte de seus direitos à cidadania sob o argumento de que constituíam uma raça inferior e morreram por isso, justificando a tensão que o debate provoca.
Uma parte do aquecimento do debate nasceu de parecer do professor Celso Lafer, cuja referência por Moreira pareceu descortês a Correia. Há, ainda, manifestação sobre o aspecto penal, a cujo respeito merece leitura o seguro parecer do professor Miguel Reale Júnior.
Além de cuidadosa avaliação filosófico-religiosa, o parecer de Lafer encontrou campo apropriado no direito constitucional. A Carta Magna afirma que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil incluem (artigo 3º, inciso IV) a promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça, entre outros. Um dos princípios regentes das relações internacionais do Brasil consiste no repúdio ao terrorismo e ao racismo (artigo 4º, inciso VIII). A preocupação do constituinte brasileiro se mostrou mais forte no artigo 5º, no campo dos direitos e garantias fundamentais. Seu inciso XLII impõe a inafiançabilidade e a imprescritibilidade para a prática do racismo. Escreve Celso Lafer que a estrutura dos direitos fundamentais dá estabilidade a um sistema integrado de valores da convivência coletiva, cujo elemento-fonte é a dignidade da pessoa humana, justificando o especial rigor da norma.
Se o leitor voltar ao artigo 3º, verificará que considera cor um característico diferente da raça. Na visão antropológica das origens do ser humano, convencionou-se que a cor era elemento étnico distintivo de peculiaridades próprias de brancos, negros, amarelos e vermelhos, em indicações evidentemente arbitrárias, como se vê na falsa atribuição da cor amarela ou vermelha a quem não a tem. Essa visão está ausente da Carta.
Duas palavras são especialmente importantes na interpretação do texto constitucional para dele extrair todos os seus efeitos jurídicos: preconceito e discriminação. No preconceito, referido pela Constituição, encontra-se o julgamento pessoal, formado por antecipação, que corresponde a avaliação contrária à pessoa ou ao objeto enfocado, gerada por ódio, intolerância ou outra causa negativa. O preconceito pode ser subjetivo, oculto, não manifestado, diferente da discriminação, que se exterioriza pelo tratamento dado ou pela opinião manifestada, diferenciando pessoas ou atos, segundo critérios proibidos por lei. Aponta Lafer, corretamente, que o critério da interpretação dos direitos humanos deve favorecer o conteúdo do direito contemplado pela Constituição. Reale Júnior amplia a extensão do inciso XLII para dizer que há no racismo realidade social e política, em referência à raça, enquanto caracterização física ou biológica do ser humano. Daí resultar sua opinião de que o crime imputado ao editor por ataques à raça judaica (terminologia utilizada pelo acusado) constitui delito punível e atingido pela imprescritibilidade. Celso de Mello votou com Maurício Correia, Gilmar Mendes pediu vista dos autos para melhor estudo. Espera-se o fim do debate na próxima semana.


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