São Paulo, segunda-feira, 12 de abril de 2004

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MOACYR SCLIAR

Pobre Pequeno Príncipe, perdido em pérfido planeta

Os destroços do avião do escritor e piloto francês Antoine de Saint-Exupéry, autor do livro "O Pequeno Príncipe", foram descobertos no litoral de Marselha, quase 60 anos após seu desaparecimento. Folha Online Mundo, 7.abr.2004

Como é fácil imaginar, a notícia de que o avião de Saint-Exupéry havia sido finalmente encontrado provocou grande comoção, sobretudo entre os fãs do escritor, ainda muito numerosos. De imediato, um comitê foi formado com o objetivo de trasladar os destroços do aparelho para um grande memorial a ser construído em Paris. Mas quando os encarregados da tarefa dirigiram-se ao local, uma pequena e pedregosa praia não distante de Marselha, tiveram uma surpresa.
De uma gruta próxima emergiu uma figura estranha. Era um velho, talvez octogenário, talvez nonagenário, longa barba, cabeleira desgrenhada, vestindo farrapos. Empunhando uma espécie de pequena espada enferrujada, avançou na direção dos homens:
- O que vocês querem? Deixem esses destroços aí. São do avião do grande Saint-Exupéry.
O chefe da equipe, homem culto e educado, achou que estava diante de um maluco. Mas não perdeu a calma. Em tom conciliador, explicou que os destroços seriam levados para um lugar em que todas as pessoas, inclusive leitores de Saint-Exupéry, pudessem vê-los. O velho abanou a cabeça:
- De maneira nenhuma. Os destroços do avião não saem daqui. Não enquanto Saint-Exupéry não retornar. Eu estou aqui à espera dele há 60 anos e ficarei mais de 60 anos se necessário.
E subitamente enfurecido gritou:
- Sessenta anos, vocês sabem o que é isso? Sessenta anos. Eu era um menino lindo, loirinho, quando vim para cá, diretamente do asteróide B 612, que vocês, aposto, nem conhecem. Agora sou um velho desdentado, reumático, um velho que passa o dia todo resmungando. Não tenho com quem falar, entendem? Não tenho com quem falar. Havia uma flor com quem eu conversava, uma bela flor, mas ela morreu há muito tempo. Havia também uma raposa, muito esperta, que me dizia coisas inteligentes; sumiu. Quanto ao Saint-Exupéry...
Enxugou os olhos:
- Não sei dele. Mas prometi a mim próprio que cuidaria dos restos de seu avião até que voltasse. E cumprirei minha promessa, custe o que custar.
O chefe da equipe tentou de novo ponderar que aquilo não tinha sentido:
- O senhor está vendo, o tempo passou, o mundo mudou...
O velho olhou-o um instante e depois disse em tom de desprezo:
- O mundo mudou? Não é isso o que eu vejo. O meu mundo continua o mesmo. É isso o que eu vejo, e eu é que estou certo. O senhor vê mal as coisas, amigo. O senhor não sabe que, como disse um escritor cujo nome já não lembro, o essencial é invisível para os olhos?
Jogou sobre os ombros o rasgado manto que tinha nas mãos, colocou sobre a cabeça a coroa agora muito pequena, e lá se foi ele, o velho Pequeno Príncipe.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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