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MOACYR SCLIAR
Pobre Pequeno Príncipe, perdido em pérfido planeta
Os destroços do avião do escritor e piloto francês Antoine de Saint-Exupéry, autor do livro "O Pequeno
Príncipe", foram descobertos no litoral de Marselha, quase 60 anos após
seu desaparecimento. Folha Online
Mundo, 7.abr.2004
Como é fácil imaginar, a notícia de que o avião de Saint-Exupéry havia sido finalmente
encontrado provocou grande comoção, sobretudo entre os fãs do
escritor, ainda muito numerosos.
De imediato, um comitê foi formado com o objetivo de trasladar
os destroços do aparelho para um
grande memorial a ser construído
em Paris. Mas quando os encarregados da tarefa dirigiram-se ao
local, uma pequena e pedregosa
praia não distante de Marselha,
tiveram uma surpresa.
De uma gruta próxima emergiu
uma figura estranha. Era um velho, talvez octogenário, talvez nonagenário, longa barba, cabeleira
desgrenhada, vestindo farrapos.
Empunhando uma espécie de pequena espada enferrujada, avançou na direção dos homens:
- O que vocês querem? Deixem
esses destroços aí. São do avião do
grande Saint-Exupéry.
O chefe da equipe, homem culto
e educado, achou que estava
diante de um maluco. Mas não
perdeu a calma. Em tom conciliador, explicou que os destroços seriam levados para um lugar em
que todas as pessoas, inclusive leitores de Saint-Exupéry, pudessem
vê-los. O velho abanou a cabeça:
- De maneira nenhuma. Os destroços do avião não saem daqui.
Não enquanto Saint-Exupéry
não retornar. Eu estou aqui à espera dele há 60 anos e ficarei mais
de 60 anos se necessário.
E subitamente enfurecido
gritou:
- Sessenta anos, vocês sabem o
que é isso? Sessenta anos. Eu era
um menino lindo, loirinho, quando vim para cá, diretamente do
asteróide B 612, que vocês, aposto,
nem conhecem. Agora sou um velho desdentado, reumático, um
velho que passa o dia todo resmungando. Não tenho com quem
falar, entendem? Não tenho com
quem falar. Havia uma flor com
quem eu conversava, uma bela
flor, mas ela morreu há muito
tempo. Havia também uma raposa, muito esperta, que me dizia
coisas inteligentes; sumiu. Quanto ao Saint-Exupéry...
Enxugou os olhos:
- Não sei dele. Mas prometi a
mim próprio que cuidaria dos
restos de seu avião até que voltasse. E cumprirei minha promessa,
custe o que custar.
O chefe da equipe tentou de novo ponderar que aquilo não tinha
sentido:
- O senhor está vendo, o tempo
passou, o mundo mudou...
O velho olhou-o um instante e
depois disse em tom de desprezo:
- O mundo mudou? Não é isso o
que eu vejo. O meu mundo continua o mesmo. É isso o que eu vejo,
e eu é que estou certo. O senhor vê
mal as coisas, amigo. O senhor
não sabe que, como disse um escritor cujo nome já não lembro, o
essencial é invisível para os olhos?
Jogou sobre os ombros o rasgado manto que tinha nas mãos, colocou sobre a cabeça a coroa agora muito pequena, e lá se foi ele, o
velho Pequeno Príncipe.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção
baseado em reportagens publicadas no
jornal.
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