|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
"O Dia do Fico"
Hoje é Dia dos (E)Namorados, para alegria (ou frustração) dos comerciantes. (Epa! Pensei alto.) De onde vem a palavra "namorado"? "Namorado"
(que se usa frequentemente como
substantivo) vem do particípio do
verbo "namorar", que, por sua
vez, resulta da aférese de "enamorar", que, por sua vez, resulta de
"en- + amor + -ar". Antes que alguém me xingue, explico que
"aférese" (ou "ablação") nada
mais é do que a supressão de um
fonema ou de um grupo de fonemas do início de uma palavra.
Não sei se a palavra "namorar"
traz às pessoas a relação imediata
com o vocábulo "amor". Posso estar enganado, mas penso que não
traz. Aliás, nem sei se é o amor o
que move os "namorados" que lotaram as lojas nos últimos dias
("Refugiamo-nos no amor, este
célebre sentimento, e o amor faltou: chovia, ventava, fazia frio em
São Paulo", escreveu Carlos
Drummond de Andrade).
Diz o mesmo Drummond que
"amor é privilégio de maduros";
para muita gente, "namorar"
(que, não custa repetir, vem de
"amor") hoje em dia está virando
(ou já virou) sinônimo de "ficar",
mas não com o sentido da frase de
dom Pedro 1º ("Diga ao povo que
fico"). Os dicionários até já registram (e têm mais de registrar) o
sentido "moderno" de "ficar".
Pois é aí que entra a nossa história de hoje: em cartazes espalhados pela cidade, um shopping
de São Paulo anuncia o "Dia do
Fico", cujo "subtítulo" é "Dia dos
Namorados é dia de ficar feliz".
Bela sacada, baseada na polissemia de "ficar". É prato cheio para
alguns vestibulares, cujas bancas
gostam de fazer questões sobre os
efeitos de sentido presentes em
certas frases publicitárias.
No caso da propaganda em
questão, os redatores conseguiram aliar o sentido "moderno" do
verbo "ficar" ao que ele tem na
frase de dom Pedro 1º, tudo isso
temperado com a tradicional
idéia de mudança e/ou permanência de estado.
No caso de dom Pedro 1º, convém lembrar que sua declaração
(que se deu em 9 de janeiro de
1822) se transformou numa data
histórica, o Dia do Fico, em que se
substantiva a palavra "fico".
Por falar nisso, qual é mesmo o
substantivo que designa "o ato de
ficar"? Eu ajudo: o ato de permanecer é "permanência"; o de comparecer é "comparecimento"; o de
"participar" é "participação". No
lugar de "Quero que você permaneça", por exemplo, pode-se usar
"Quero a sua permanência"; no
de "Quero que você participe",
pode-se empregar "Quero a sua
participação". E no lugar de
"Quero que você fique"? Prepare-se: "Quero a sua ficada". Bem, pelo menos é o que dizem os dicionários em "ficada": "ato de ficar",
"permanência". Que tal? Pense
em alguém lhe dizendo algo como
"Meu amor, não se vá. Para mim,
é fundamental a sua ficada". Não
há amor que resista, certo?
Bem, a esta altura só me resta
lembrar que é muito importante
o domínio dos nomes que indicam "o ato de", o que, no mínimo,
evita o muitas vezes desagradável
fenômeno da repetição do "que".
Mas é bom não exagerar. É preciso ter um pouco de coragem para
empregar "ficada", sobretudo hoje ("Meu amor, minha ficada
aqui é impossível"). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
Texto Anterior: Aprovação prejudica planos regionais Próximo Texto: Trânsito: Limpeza fecha à noite o túnel Anhangabaú Índice
|