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São Paulo, quinta-feira, 12 de junho de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"O Dia do Fico"

Hoje é Dia dos (E)Namorados, para alegria (ou frustração) dos comerciantes. (Epa! Pensei alto.) De onde vem a palavra "namorado"? "Namorado" (que se usa frequentemente como substantivo) vem do particípio do verbo "namorar", que, por sua vez, resulta da aférese de "enamorar", que, por sua vez, resulta de "en- + amor + -ar". Antes que alguém me xingue, explico que "aférese" (ou "ablação") nada mais é do que a supressão de um fonema ou de um grupo de fonemas do início de uma palavra.
Não sei se a palavra "namorar" traz às pessoas a relação imediata com o vocábulo "amor". Posso estar enganado, mas penso que não traz. Aliás, nem sei se é o amor o que move os "namorados" que lotaram as lojas nos últimos dias ("Refugiamo-nos no amor, este célebre sentimento, e o amor faltou: chovia, ventava, fazia frio em São Paulo", escreveu Carlos Drummond de Andrade).
Diz o mesmo Drummond que "amor é privilégio de maduros"; para muita gente, "namorar" (que, não custa repetir, vem de "amor") hoje em dia está virando (ou já virou) sinônimo de "ficar", mas não com o sentido da frase de dom Pedro 1º ("Diga ao povo que fico"). Os dicionários até já registram (e têm mais de registrar) o sentido "moderno" de "ficar".
Pois é aí que entra a nossa história de hoje: em cartazes espalhados pela cidade, um shopping de São Paulo anuncia o "Dia do Fico", cujo "subtítulo" é "Dia dos Namorados é dia de ficar feliz". Bela sacada, baseada na polissemia de "ficar". É prato cheio para alguns vestibulares, cujas bancas gostam de fazer questões sobre os efeitos de sentido presentes em certas frases publicitárias.
No caso da propaganda em questão, os redatores conseguiram aliar o sentido "moderno" do verbo "ficar" ao que ele tem na frase de dom Pedro 1º, tudo isso temperado com a tradicional idéia de mudança e/ou permanência de estado.
No caso de dom Pedro 1º, convém lembrar que sua declaração (que se deu em 9 de janeiro de 1822) se transformou numa data histórica, o Dia do Fico, em que se substantiva a palavra "fico".
Por falar nisso, qual é mesmo o substantivo que designa "o ato de ficar"? Eu ajudo: o ato de permanecer é "permanência"; o de comparecer é "comparecimento"; o de "participar" é "participação". No lugar de "Quero que você permaneça", por exemplo, pode-se usar "Quero a sua permanência"; no de "Quero que você participe", pode-se empregar "Quero a sua participação". E no lugar de "Quero que você fique"? Prepare-se: "Quero a sua ficada". Bem, pelo menos é o que dizem os dicionários em "ficada": "ato de ficar", "permanência". Que tal? Pense em alguém lhe dizendo algo como "Meu amor, não se vá. Para mim, é fundamental a sua ficada". Não há amor que resista, certo?
Bem, a esta altura só me resta lembrar que é muito importante o domínio dos nomes que indicam "o ato de", o que, no mínimo, evita o muitas vezes desagradável fenômeno da repetição do "que". Mas é bom não exagerar. É preciso ter um pouco de coragem para empregar "ficada", sobretudo hoje ("Meu amor, minha ficada aqui é impossível"). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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